artigo publicado na seção Hoje é dia de...Caderno Alternativo,
jornal o Estado do Maranhão, hoje, sábado
“As palavras, como se sabe, são seres vivos.” Vítor Hugo.
De
vez em quando leio nas manchetes dos jornais frases que denunciam a ação de
alguns estúpidos: “Vândalos destroem patrimônio público.”, deixando-me a incômoda impressão de que os autores do
delito estão sendo elogiados. Sim, porque a palavra vândalo soa muito bonita para classificar esse
tipo de gente, é sonoramente agradável, parecendo recusar-se a simbolizar os indivíduos
em questão, mesmo que esteja aí para isso. Enfim, quando a palavra resiste ao
significado que se pretende da mesma, tudo indica que ela cumpre sua obrigação
de representar, seja lá o que for, a
contragosto e, neste caso, por ser sonoramente agradável, insurge-se com certa rebeldia contra o que se pretende
dela, mais ou menos como o denunciado pelo romancista francês na epígrafe
acima.
Nesse caso, melhor para eles, os selvagens, quando são cognominados de vândalos porque ao
invés de serem achincalhados são, no meu modo de entender, estimulados. “A palavra é tão bonita que dá
até vontade de fazer o que eles fazem só para merecer ser chamado de palavra tão bonita”,
não é mesmo?
Tal
impropriedade não parece atingir todas as palavras, ao contrário, pois umas são,
exatamente, a feição
daquilo que delas se diz. Só para dar um exemplo próximo a palavra
achincalhar do parágrafo acima, nunca me pareceu tão bem investida em sua
tarefa de significar o que, no popularesco, seria equivalente a esculhambar ou escorraçar. (Teria a sílaba lha
essa característica, de proporcionar
pela sua sonoridade essa conotação de menosprezar, como na palavra canalha? Os
lingüistas que me ajudem nessa associação se houver).
Lembro
que o escritor mineiro Oto Lara Rezende dizia que a palavra mais bonita da
língua portuguesa é lêndea, essa mesma facilmente incluída entre aquelas que se
rebelam contra seu destino e sina. Embora não chegue a mesma conclusão do escritor
mineiro, é fácil concordar com ele em que a sonoridade elegante e poética da
palavra em nada condiz com o ovo de um piolho, que representa. Estão igualmente
nesse time, a meu ver, tantas outras como Lúcifer, Melancolia, Apocalipse,
Vendaval, ou Holocausto. Caso não representasse o demo tenho certeza de que muitos
pais teriam grande orgulho em colocar em seus filhos o nome de Lúcifer de tão
bonito que é. (Se você, leitor, resiste neste instante em considerá-lo assim, é
porque está preso a uma consciência de pré-raciocínio, senão, responda
depressa: qual nome é mais bonito: Lúcifer ou Cauã? Lúcifer ou Caíque? Existe nome
mais horroroso que se possa dar a um filho de que Cauã? Se nos abstrairmos da
significância anterior é evidente que o nome Lúcifer soa muito mais bonito, com a sua sonoridade
elegante e angelical, do que Cauã, que
parece com tudo menos com nome de gente. Ou, então, Caíque...Esse não tem mesmo a aparência de uma
canoa de segunda?). E, assim por diante,
ao nos abstrairmos do que significam e atentarmos para suas
características os nomes apresentam
personalidades, as mais inesperadas possíveis.
Quem pode
negar que Melancolia teria a cara da Monalisa, independente do que ela está
pensando por trás do seu indecifrável sorriso? E Vendaval, não se parece muito
mais com um guerreiro lendário? E Rouxinol, não parece um jovem- um tanto
efeminado, vá lá – que toca muito bem violino? Ora, se reconhecemos que as
palavras têm suas personalidades o mínimo que deveríamos fazer com respeito a
isso seria evitar sua degradação, como, por exemplo, estamos fazendo com a
palavra corrupto. Se corrupto alguma vez
teve muito mais a semelhança natural apropriada a alguém que pertenceria a uma seita religiosa meio misteriosa e passou
‘pela obrigação lingüística que lhe foi imposta’ a representar o indivíduo vil que se corrompe, a sua
banalização num país como o nosso, está
fazendo com que fique cada vez mais parecida a um sujeito enfatuado e buxudão, com
uma perua ex- bonita do lado, num carrão importado e se achando muito orgulhoso
por fazer jus a um epíteto tão nobre e corriqueiro (para a sociedade
hoje em dia ) como corrupto.
Contra isso,
essa contínua e imperdoável interferência
dos homens nas palavras, nas suas personalidades e seus significados,
permanecem aquelas que, indeléveis, permanecerão para sempre intocáveis. Como a
palavra pássaro, por exemplo. A palavra pássaro é outro pássaro.