domingo, 5 de março de 2017

GOLEIRO BRUNO, ELISA E O NADA



Artigo publicado no jornal O estado do Maranhão


Muito se tem escrito sobre o isolamento a que se relega o ser humano em seus últimos momentos.  A assepsia e o tecnicismo de uma UTI, distantes do aconchego e da solidariedade familiar, concorrem para esse estado de coisas. É como se o quase morto passasse a pertencer  a uma vexaminosa confraria de seres: os que se aproximam de mortos, e, por isso, são capazes de contaminar a alegria e o prazer dos que estão vivos.
            Se esse é o modus operandi dessa relação com os quase mortos, imagine-se para os mortos, os definitivamente mortos: aqueles a quem, segundo essa visão que hoje predomina, se deve evitar a todo custo. Ora, alguém pode refutar  que continuam se fazendo homenagens aos mortos, que estes são venerados e reverenciados, mas não falo aqui daqueles cuja trajetória  foi cultivada no ambiente festivo do que se costuma chamar celebridades. Para estes as lágrimas jorram ainda que a dor seja passageira e artificial, como provavelmente foi o defunto. Mas falo do morto comum, sem grana e sem fama, aqueles por quem choram apenas pais e filhos, quando muito.
            Como uma garota de programa pobre, por exemplo. 



                                              




Que haja nascido razoavelmente bonita e que por isso mesmo faz filmes pornôs e transa por dinheiro. Que para muita gente nem chega a garota de programa (essas, com sorte,  chegam até a BBB) , mas só vai até prostituta mesmo. Enfim, alguém que depois de morta o melhor para todo mundo é que  desapareça sem deixar vestígios que atrapalhem  a festa dos que ficaram vivos: alguém que tenha sido nada, absolutamente nada.
            Como assim se referiu o Ministro Marco Aurélio Melo, do alto de sua sapiência jurídica e arrogância imperial,  ao explicar o habeas corpus concedido ao goleiro Bruno, que esteve preso durante 5 anos.  Ele, que mandou matar e dar sumiço em uma mulher grávida por estar esperando um filho seu. Ela que, por essa razão, foi feita prisioneira dele e depois morta, esquartejada e teve ossos e carnes  devorados por cães sedentos para ‘sumir’ definitivamente de sua vida, conforme denunciaram  amigos presos do jogador. No dizer do ministro tanta atrocidade nada significa: “Nada,  absolutamente nada, justifica a prisão deste rapaz durante todo esse tempo.”
            Ao basear-se para sua decisão em nebulosas interpretações do rigor da lei,  causa  espécie que haja contribuído para manifestações a favor de sua decisão o fato de não haverem descoberto o cadáver da moça. “Se não descobriram o cadáver, então não há crime.” Inauguram assim um conselho aos monstros capazes de assassinatos cruéis como o que provocou a eliminação de Elisa Samúdio (sim, ela foi um ser humano e teve nome, gente): “Quando matarem a partir de agora façam tudo para exterminar completamente a vítima. Assim, terão garantidas  suas liberdades”. 
                        A desfaçatez do assassino Bruno, depois de liberto, ao evocar cinicamente a compaixão da sociedade em contraponto à que não teve com sua vítima ao dizer que “Minha permanência na cadeia não a trará de volta”, ressoa em consonância com a opinião do ministro expondo a lógica de uma lei que promovesse a  remissão de todas as crueldades porque...os mortos não voltam e, portanto, não merecem que algum vivo  perca tempo com eles.

            “Este é um País feito de bandidos para bandidos”, já disse um eminente jurista do passado e  parece caminhar para isso cada vez mais  Para os bandidos, tudo. Para suas vítimas nada. Absolutamente nada.

José Ewerton Neto, é autor de O entrevistador de Lendas





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