RECANTO DA POESIA



                                                         2 poemas de Stéphane Mallarmé, poeta francês, do livro Mallarmé, de Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos 








BRINDE

Nada, esta espuma, virgem verso
A não designar mais que a copa:
Ao longe se afoga uma tropa
De sereias  vária ao inverso

Navegamos, ó meus fraternos
Amigos, eu já sobre a popa
Vós à proa em pompa que topa
A onda de raios e de invernos;

Uma embriaguez me faz arauto,
Sem medo ao jogo do mar alto,
Para erguer, de pé, este brinde

Solitude, recife, estrela
A não importa o que há no fim de
Um branco afã de nossa vela.









BRISA MARINHA

A carne é triste, sim, e eu li todos os livros.
Fugir! Fugir! Sinto que os pássaros são livres,
Ébrios de se entregar à espuma e aos céus imensos.
Nada, nem os jardins dentro do olhar suspensos,
Impede o coração de submergir no mar
Ó noites! Nem a luz deserta a iluminar
Este papel vazio com seu branco anseio,
Nem a jovem mulher que preme o filho ao seio.
Eu partirei! Vapor a balouçar nas vagas
Ergue a âncora em prol das mais estranhas plagas!

Um tédio, desolado por cruéis silêncios
Ainda crê no derradeiro adeus dos lenços!
E é possível que os mastros, entre as ondas más,
Rompam-se ao vento sobre os náufragos, sem mas-
Tros , sem mastros, nem ilhas férteis, a vogar...
Mas, ó meu peito, ouve a canção que vem do mar!












Resumindo, Claribel Alegria
poetisa nicaraguense 





Nos sessenta e três anos
que vivi,
alguns instantes são eletrizantes:
a felicidade de meus pés
pulando poças por
seis horas em Machu Picchu,
o zumbido do telefone
enquanto aguardava a morte de minha mãe,
os dez minutos que levaram
a perder minha virgindade,
a voz rouca
anunciando o assassinato
do arcebispo Romero
quinze minutos em Delft,
o primeiro lamento da minha filha
Eu não sei quantos anos ansiando
pela libertação do meu povo
certas mortes imortais
os olhos daquela criança faminta
seus olhos me banhando no amor
um miosótis tarde
o desejo de me moldar
em um verso
um choro
um grão de espuma.
















2 poemas de e. e. cummings poeta norte americano,
do livro xix poemas, tradução
de Jorge Fazenda Lourenço 







Buffalo Bill

o defunto
que costumava
montar um garanhão
de prata como água macia
a rebentar umdoistrêsquatrocincotiposdeumavez
oh!céus
era um homem bonito
e o que eu desejo saber é
o que lhe parece esse rapaz de olho azul
Senhor Morte






[i]
pode nem sempre ser assim; e eu digo
que se os teus lábios que amei, tocarem
os de outro, e os teus dedos fortes e meigos cingirem
o seu coração, como o meu em tempos não muito distantes;
se na face de outro os teus suaves cabelos repousarem
nesse silêncio que eu sei, ou nessas
palavras sublimes e estremecidas que, dizendo demasiado
ficam desamparadamente diante do espírito vozeando;

se assim for, eu digo se assim for –
tu do meu coração manda-me um recado;
que eu posso ir junto dele, e tomar as suas mãos,
dizendo, Aceita toda felicidade de mim .
Então hei de voltar a cara e ouvir um pássaro
cantar terrivelmente longe nas terras perdidas. 




Três poemas de Hélio Pellegrino, poeta mineiro, do livro
Minérios Domados, poesia reunida, do autor. 








AS ROSAS POSSÍVEIS

Esta rosa, tensa em seu espaço,
recorta e inaugura o espaço da rosa
tensa e presente, aqui e agora.
Mas esta rosa, aqui e agora, recorta e inaugura
o espaço onde não há rosas,
o ser da rosa presente define com minúcia o não-ser
das rosas possíveis,
e o perfume das rosas possíveis
irrompe nesta sala,
e inaugura as rosas futuras nesta sala,
e milhares de rosas futuras fervem  no espaço
desta sala,
múltiplo, tenso de futuro, túmido
em seu vazio onde se tornam possíveis
as rosas possíveis.








AO PATRIARCA MORTO

A doença devastou teu corpo
roeu tua carne
sacudiu teus ossos

A doença fustigou tua figura
secou teus músculos
expurgou tua forma
Ficaste a cada dia menor
como um pássaro na grande chuva
como um pobre animal tosado

Até que a morte
                - acabamento e fim –
de ti extraiu tua essência:
um pequenino – e apaziguado –
menino de marfim.








METAMORFOSE

Como um touro emborcado em sua saliva
assim calou-se o vento. E do princípio
do mundo fez-se um choro, coisa viva
arrastada na pedra, seca, ardida,
muro sangrando humores, rês parida
enrolada em sua língua. E logo armou-se
um silêncio fortíssimo , argamassa
coagulando as galharias, talho
no horizonte fendido como um osso.
E do cavo momento abriu-se o poço
de onde jorrou a rosa sobre o muro.
E da rês enforcada urdiu-se o escuro
lume da noite nova que se enflora.
E da testa do touro ergueu-se a aurora. 










Dois poemas de William Carlos Williams, poeta norte-americano 
do livro William Carlos Williams Poemas, tradução de José Carlos Paes







NAVEGANTE

O mar virá escavar
mas as rochas – arestas denteadas
a cavaleiro da toalha de espuma
ou uma corcova ou então pináculos
                               com mergulhões – são o homem pertinaz.

Ele provoca a tempestade, ele
vive por ela! repassado
de temores que não são temores
mas aguilhões de êxtase,
um álcool secreto, um fogo
que lhe inflama o sangue até
a frieza pelo que as rochas
mais parecem lançar-se
sobre o mar do que o mar
envolvê-las. Estiram-se
no esforço de agarrar navios
ou até o céu que
se debruça para ser despedaçado
sobre elas. Ao que ele diz,
Sou eu! Eu é que sou as rochas!
Sem mim nada se ri. 




SONETO EM BUSCA DE UM AUTOR

Corpos nus como troncos descascados
Exalam, por vezes, um aroma  dos mais
doces, homem, mulher

sob as árvores em pleno desgarramento
condizente com a alfombra de

perfumosas folhas de pinheiro
bordada de madressilvas rasteiras
um soneto podia ser feito disso

Podia ser feito disso! Aroma de desregramento
aroma de agulhas de pinheiro, aroma
de troncos descascados, aroma de aroma algum
salvo o de madressilvas rasteiras que

não têm aroma, aroma de mulher nua,
por vezes, aroma de homem. 
















Dois poemas de Ledo Ivo, poeta alagoano, do livro
Crepúsculo Civil, poesia.







NA CADEIRA DO ENGRAXATE

Amanheci Deus.
E curvado aos meus pés
um pálido engraxate entoa a sua prece.

Do alto do meu trono
contemplo ao meu redor
a poeira do Universo
e os pecados dos homens.

Do couro avariado
uma flanela extrai
espelhos e lampejos.

Uma boa gorjeta!
Os meus sapatos brilham
e ofuscam as estrelas.



A DESAVENÇA

A mim mesmo faço guerra.
De mim estou desavindo.
Luto comigo na treva
e desse combate infindo
nem  vencido ou vencedor
jamais surge à luz do dia.
Sou meu próprio contendor.
Quem a mim derrotaria?
Qual a razão da contenda
entre os dois lados de mim?
Na escuridão sigo a senda que leva
O meu não ao sim
e deste sim faz um não.
Ó desconcerto do mundo!
Encoberto coração!
Na terra que é mar profundo
nas águas que são de pedra
divergido me combato.
Minha guerra nasce e medra
na vida com que me mato
na morte em que sou matado.
No chão caio triunfante.
Ao vencer sou derrotado.
Me derrubo e me levanto.
E assim vivo e assim morro
concertado em colisão
e de mim não me socorro.
E se de mim não me fio
em incessante desvario
a mim mesmo dou razão. 











Dois poemas de Stephen Crane, escritor e poeta norte-americano 
do livro Antologia da nova poesia norte-americana seleção e tradução
de Jorge Wanderley 






EU VI UM HOMEM PERSEGUINDO O HORIZONTE

Eu vi um homem perseguindo o horizonte:
Gritavam e giravam à toa.
Aquilo me perturbou;
Aproximei-me do homem.
´”É tolice,” murmurei,
“Você jamais poderá...”
“Você mente”, gritou ele,
E continuou correndo.









PAREI NUM LUGAR MUITO ALTO

Parei num lugar muito alto
E vi, lá embaixo, inúmeros diabos
Correndo, saltando,
Num festival de pecados.
Um deles olhou para cima gargalhando
E disse:  “Camarada! Irmão!”







Quatro poemas de Jamil Damous, poeta maranhense, 
do livro O rei do vento






UMA AUSÊNCIA SE ENGASTA NO MEU ROSTO


Uma ausência se engasta no meu rosto
por um buril cruel, o tempo amaro,
desescultor voraz, sempre em seu posto
dilapidando o que era belo e raro.

Que fazer com essa cara, a destes dias,
que cara a cara o passado mira?
um nada se repete (nada, nada)
mas mesmo assim ainda se admira

porque cara, essa é a minha cara
e esse sou eu! Num júbilo insuspeito,
eis-me aqui, ante a lâmina do espelho.

Isso é justo, isso é´bom, isso é direito?
Não me dá a resposta. Vira a cara,
dá as costas e o seu sinal vermelho. 





O FOTÓGRAFO E A PAISAGEM

a coisa real come o olho
que não a prende

a câmera come a coisa real
agora presa

um dia é do fotógrafo
outro da paisagem.







SONETO DO QUE NÃO PASSA

Te dou o meu passado de presente
a luz de um certo maio que se foi,
a lua que luava sobre a gente
no campo antigo onde pastava um boi.

Eretas palmeiras te ofereço
e o vento que dançava sensual
em suas palmas, com as quais eu teço
esse canto de dor e carnaval.

Te trago desse tempo o que não passa:
a flor que nunca murcha no seu vaso,
as suas cores vivas, inifinitas,

um vinho intocado em sua taça,
um arco-íris antes do ocaso
e um buquê de palavras nunca ditas.







NO TREM DE CAMBRIDGE

no trem de cambridge
para Londres
a noite inglesa caía
do lado de fora
fleumática e fria.
dentro do trem eu ia
lendo a paisagem.
A sintaxe das coisas tristes
não me era estrangeira.
o que ela me dizia
de há muito eu já sabia:
que é do lado de dentro a paisagem,
que é pro rumo de dentro
toda viagem. 




















Dois poemas de Salgado Maranhão, poeta maranhense, 
do livro O mapa da tribo





A FEBRE VERBAL

A febre verbal
é o ruído do sonho
na palavra.

O clamor da eternidade
 urgente
(como  Sócrates
que queria tocar lira
antes de morrer).

As impressões dão-se
                               ao risco
de cruzar o fogo
sem perder o jogo:
no céu da boca
o sol da linguagem
tece relâmpagos.
E disto é o reino da voz
sobre  as sombras; e  disto
é a forma do vento.

A febre do poema é o tálamo
Que dá língua à pedra.
Um rito à borda do delito. 







LITANIA 10

Mordo a carne dos morangos
na manhã solar
                               de Laranjeiras,
como quem mastiga os gomos
da palavra feliz.

Agarro-me
a este ínfimo e solitário
gesto
neste sábado frugal –
entre livros avulsos
                e lembranças.

Quanto de mim
                se há perdido
nessas manhãs? E
quanto me hei de resgatar?
Colado ao barro e à contingência,
grito à glória do instante –
entre frutos ardentes e desejos.

Pudera ser como os pássaros
que nada perguntam;
ou a pedra
                que só conhece o sempre...
Bendita seja, então, a flor
deste agora,
em que como morangos

com o sol da manhã.








Dois poemas de Mário Benedetti, poeta uruguaio, 
do livro Antologia Poética, tradução de
Jorge Luís Gehlén 





ZERO

Meu saldo diminui a cada dia
que digo a cada dia
a cada minuto        a cada
golfada de ar

mexo meus dedos como se pudessem
estender ou estender-me
mas meu saldo diminui

mexo meus pés qual se pudessem
carregar ou carregar-me
mas meu saldo diminui

meu saldo diminui a cada dia
que digo a cada dia
a cada minuto             a cada
golfada de ar

e tudo porque
esse cupincha da morte
o zero
está esperando






O SILÊNCIO DO MAR

O silêncio do mar
brama um juízo infinito,
mais concentrado que o de um cântaro
mais implacável que duas gotas

que aproxime o horizonte ou nos entregue
a morte azul das medusas
nossas  suspeitas não o deixam

o mar escuta como um surdo
ou insensível como um deus
e sobrevive aos sobreviventes

nunca saberei o que espero dele
nem que juras deixa atrás de meus passos
mas quando esses olhos se fartam dos ladrilhos
e esperam entre o plano e as colinas
ou em ruas que se fecham em mais ruas
então sim me sinto um náufrago
e só o mar pode salvar-me 
















Dois poemas de Mao Tse Tung, poeta e ditador chinês, traduzidos
do espanhol, pelo autor do blog. 








Vermelho, laranja, marrom, verde, azul, anil e violeta:
Quem, no céu, dança a ondular, essa faixa de cores?
 
O sol espreita depois da chuva.
Jasmins azuis invadem as colinas.
Foi tão furioso o combate de ontem
Que as paredes da aldeia, incrustadas de  balas
Adornam estas colinas.
Que hoje, no entanto, parecem,  ainda mais belas!





Montanhas! Ao galopar chicoteio meu cavalo
Sem jamais desmontar.
Ergo a cabeça e me espanto!
Estou a três pés e três polegadas do céu. 



Dois poemas de Charles Baudelaire, poeta francês, do livro
A melhor poesia do Mundo, na tradução de Guilherme de Almeida







A BELEZA

Sou mais bela, ó mortais! Que um sonho de granito,
E meu seio, onde vem cada um gemer de dor,
Foi feito para o poeta inspirar um amor
Semelhante à matéria, isto é, mudo e infinito.

Reino no azul como uma esfinge singular;
Meu coração é neve e ao mesmo tempo arminho;
Odeio o que se move e faz o desalinho,
E não sei o que é rir, nem sei o que é chorar.

Os poetas, ante as minhas grandes atitudes,
Que aos monumentos mais altivos emprestei,
Consumirão o ser nos seus estudos mais rudes;

Pois para esses servis amantes reservei
Um puro espelho em que é mais bela a realidade:
Meu olhar, largo olhar de eterna claridade!










A UMA PASSANTE

À rua, em torno, era ensurdecedora vaia.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão vaidosa,
Erguendo e balançando a barra alva da saia;

Perna de estátua, era fidalga, ágil e fina.
Eu bebia como um basbaque extravagante,
No tempestuoso céu de seu olhar distante,
A doçura que encanta e o prazer que assassina.

Brilho...E a noite depois! – Fugitiva beldade
De um olhar que me fez nascer segunda vez,
Não mais hei de rever senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! nunca, talvez!
Pois não sabes de mim, não sei que fim  levaste,
Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!































Poema de Adília Lopes, poeta portuguesa. (Transcrita
do jornal Rascunho, edição de Maio, 2018).






ARTE POÉTICA

Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pensei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo que vem às mãos é peixe
o peixe debate
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer





3 poemas de Jacques Prevert, poeta francês, do livro
POEMAS , de Jacques Prevert, seleção e tradução
de Silviano Santiago 







BATISMO DE AR

Essa rua
Outrora chamada rua de Luxemburgo
por causa do jardim
Hoje é chamada de rua Guynemer
por causa de uma aviador morto na guerra
No entanto
essa rua é a mesma de sempre
o jardim é sempre o mesmo
é sempre o de Luxemburgo
Com alamedas...estátuas...fontes
Com árvores
arvores vivas
Com pássaros
pássaros vivos
Com crianças
todas as crianças vivas
Então a gente pergunta
a gente pergunta pra valer
por que um aviador morto foi ali meter o bedelho.









O METEORO

Por entre as grades do edifício penitenciário
uma laranja
passa como um raio
e vai cair no vaso
como uma pedra
E o prisioneiro
todo sujo de merda
resplandece
todo iluminado de alegria
Ela não me esqueceu
Continua pensando em mim.









O AMOR ROBÔ

Um homem escreve à máquina uma carta de amor e a má-
                               quina responde ao homem e à mão como se fosse a
                                                                                                              destinatária
Tão aperfeiçoadas as Máquinas
A máquina de lavar cheques e cartas de amor
E o homem confortavelmente instalado na sua máquina de
                morar lê com a máquina de ler a resposta na máquina
                                                                                                              de escrever
E na sua máquina de sonhar com a sua máquina de calcu-
                                               lar compra uma máquina de fazer amor
E na sua máquina de realizar os sonhos  faz amor com a
                máquina de escrever com a máquina de fazer amor
E a máquina o engana com um mecânico
um mecânico que morre de rir. 

























3 poemas de Manoel ~Antonio, poeta espanhol, do livro 
POESIAS, editora Galaxia, 1972








XUIZO FINAL

SON as seis d’o serán
n-o reloxe tardio d’o Outono
O torgo d’a buguina
-tomóu d’as nubes esa opacidade
E o centro d’as cousas
Asuméu-se ao redor –
vai chamando á presenza
-escolma de saudades
remorsos pesadelos –
Os cadavres sin rumbo
Dos mariñeiros afogados
E alá n-o Mar sin fin
eu estou axionllado tamén.










NOITE DE REIS

AS ESTRELAS perderon o camiño
e non se sabe a onde foron
A choiva rítimica testimoña
que as trebas non se furan.

Os Reis d’Ourente perderon o camiño
por ir-se co-as estrelas
Hai unha man que desamaña
os camiños botando-os a rolos
Non lle ouvirás destecer
á panxoliña fios calados
O vento a rentes a rezar
parodias ledas.

Vai peneirado pol-o rego um brilo?
Afogóu-se unha estrela.










DEIXA CHEGAL-O SON

DEIXA chegal-o son
que é tan d’iste meu intre
Entrebado e morno
                                               Temeroso
                                                                              Acariñante
Alma irredenta d’o acordión!
Prega acougar
                               Insipiron-o
                                                               Botáron-o
Chega canso
                               desazado
                                               agoniante
Axiónla-se em min
Deixa chegar isa monotinia:
é un anaco d’a y-alma
que n-outrora perdin. 


















3 poemas de D. H. Lawrence, do livro Poemas de D.H.Lawrence, 
edição bilíngue do centenário, tradução e seleção de
Leonardo Fróes





NA CORDA BAMBA

Muitos anos eu tenho que queimar ainda, detido
Como uma chama de vela neste corpo; mas viçosa
Sombra se inclui em mim, presença de azul contido
No meu ardor de viver, o oculto coração da rosa.

Pelos dias assim, enquanto queimo ao combustível da vida,
Pouco importa o que tenho em minhas labaredas a mesmo,
Já que vejo que o centro é a sombra inviolada,
A escuridão que por mim sonha meu sonho, sempre o mesmo.




RELATIVIDADE

Gosto das teorias da relatividade e dos quanta
porque não as compreendo
e elas me fazem sentir como se o espaço mudasse
            de lugar como um cisne que não pode
acomodar-se, estar imóvel, ser medido;
e também como se o átomo fosse uma coisa impulsiva
mudando constantemente de ideia.




O MAR, O MAR

O mar dissolve tanta coisa
e a lua leva embora tão mais
do que sabemos –

Assim que a lua baixa
e o mar se apossa de nós
as cidades se dissolvem como sal-gema
o açúcar funde fora da vida
o ferro some como velha mancha de sangue
o ouro se transmuda em sombra verde
o dinheiro deixa sequer um sedimento:
só o coração cintila em seu triunfo salino
sobretudo o que soube e agora foi-se
na salinidade do nada.








2 poemas (sobre o horizonte) DE ARLETE NOGUEIRA DA CRUZ
poetisa maranhense, do livro Colheita, Antologia Poética, de
Arlete Nogueira da Cruz








II

No horizonte era onde o meu céu começava.
A olhá-lo, tragava nos olhos, tangível,
o ansiado lugar deste mundo que dava
o ensejo de ter o meu céu disponível.

Mas o longe de meu horizonte era tanto
que em criança era custoso vencê-lo.
Indaguei de alguém  por acaso um encanto
que pudesse existir para então merecê-lo.

E assim eu dispunha de meu horizonte,
Lugar, antecâmara, de meu ser incontido,
passagem, fronteira que me era da ponte

para o azul que havia além do horizonte.
E ficou-me esse sonho assim resumido
no fascínio que eu tive inventando essa ponte.










VI

Sei afinal que o horizonte
É aprendizagem, ensina a gente
situar o que está logo adiante.
Além de tudo, torna presente


a impressão de que  avante,
a gente andando, se encontra  rente
de onde se acha o horizonte.
Também uma coisa qualquer um sente:

é que estando no centro e ante
 a linha curva que cerca a gente
cada um pensa ser importante,

no meio do mundo, sem aderente,
dono de tudo, do horizonte,
que não se nega, circunferente. 


















2 POEMAS DE GUILHERME DE ALMEIDA, poeta paulista
do livro Meus Versos mais queridos, de Guilherme de Almeida








A ÂNFORA DE ARGILA

Está cheia demais minha ânfora de argila.
Transborda a essência: és pobre e eu não posso reparti-la
contigo, ó tu que vens de longe e tão perto
passas de mim! É longo e estéril o deserto...

Meu vinho é puro e toca as bordas do meu vaso:
antes que beba o chão, Peregrino do Acaso,
chega-te, e vem matar no bocal generoso
a eterna sede do teu cântaro poroso!
Enche-o e parte! Depois,  olha atrás...e recorda!
Todo amor não é mais que um “eu” que transborda.






O DOMADOR

Todas as vozes amáveis da natureza
moram no bojo da minha flauta.

Eu recosto a cabeça
ao tronco familiar desta árvore alta:
e de dentro da cama rústica
o meu sopro tira uma música
que encanta o rio que corre
como uma serpente mole,
e faz dançar as estrelas
como uma ronda de abelhas.
E até esta pequena sombra,
toda negra e molhada de sol, rola e tomba
como um tigre doméstico a meus pés. 




















3 POEMAS DE MÁRIO de SÁ CARNEIRO, POETA PORTUGUÊS,
do livro Sá Carneiro, todos os poemas. 




FIM

QUNDO EU MORRER batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro.










O PAGEM

Sozinho, de brancura, eu vago – Asa
De rendas que entre cardos só flutua...
- Triste de Mim, que vim de Alma  p`ra rua,
E nunca a poderei deixar em casa...








O RECREIO

NA MINHA ALMA há um balouço
Que está sempre a balouçar –
Balouço à beira de um poço,
Bem difícil de montar...

- E UM MENINO DE BIBE
Sobre ele sempre a brincar...

Se a corda se parte um dia
( E já vai estando esgarçada),
Era uma vez a folia:
Morre a criança afogada...

- Cá por mim não mudo a corda,
Seria uma grande estopada...

Se o indez morre, deixa-lo...
Mais vale morrer de bibe
Que de  casaca...Deixá-lo
Balouçar-se enquanto vive...

-Mudar a corda era fácil...
Tal ideia  nunca tive...
















2 POEMAS DE RONALDO COSTA FERNANDES, POETA MARANHENSE, 
RADICADO EM BRASÍLIA 





Lições de bazar e de sebo ou Fábula, do livro 
O difícil  exercício das cinzas 


Procuro um objeto velho,
empoeirado, em desuso,
que  está numa prateleira
no alto onde não se alcança,
há muitos anos adormecido
na contabilidade da loja.

Busco o estranho objeto
que um dia fugaz vislumbrei
no bricabraque dos tempos,
escondido dos olhos utilitários
e das mãos ávidas do hoje

E lá encontro, depois de busca
Inquietante, o objeto que a mim
se denuncia e, sob a capa do limo,
ressurge tosco e embrutecido:
é o sublime que se delata
e logo escapa das minhas mãos
excitadas e no chão se arruína.








De como eu quase matei Carlos Drummond de Andrade, do livro
O difícil exercício das cinzas 

Certa vez entrei no elevador
e encontrei o poeta Carlos Drummond de Andrade.
Era no Palácio da Cultura,
na rua México, onde o poeta trabalhou
a vida inteira.
Só nos dois no elevador.
Silêncio.
Houve um espasmo poético,
um frio na barriga em verso livre,
a máquina do mundo da poesia
ali na caixa de ferro do elevador.
Fiquei pensando
que poderia matar o poeta CDA.
Ficaria famoso como ficou famoso
Lee Oswald  por matar Kennedy.
Falariam de mim  toda vez que
Falassem de Drummond.
Mas não aconteceu nada. A porta
do elevador abriu, o poeta
publicou mais livros de poesia
e eu não matei CDA.
Ah, ficaria famoso como
quem matou John Lennon.
Como era mesmo  nome dele? 








Viola d`Amore, poema de Moya Cannon, poeta irlandesa, tradução de
Luci Collin, jornal RelevO, edição de maio 1917


VIOLA D` AMORE

Às vezes o amor morre mesmo,
mas às vezes, córrego na rocha porosa,
desce em direção ao escuro interior de uma colina,
junta-se a outros fluxos ocultos
e viaja cego como os peixes brancos que nele vivem.
Abandona o leito de um córrego subterrâneo
pela caverna que corre debaixo dele.
Secreto, instrui a colina,
e, como as cordas ocultas da viola d`amore,
a faz reverberar,
de modo que as pessoas que por ali passeiam
perguntam-se porque a colina canta,
perguntam-se porque encontram poços. 





















Poema à Mãe, Eugênio de Andrade, poeta português, 
do livro Os amantes sem dinheiro, na seleção de
Denira Rosário para Palavra de Poeta


POEMA À MÃE

No mais fundo de ti
eu sei que traí, mãe.

Tudo porque  já não sou
o menino adormecido
no fundo dos teus ohos.

Tudo porque ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo,
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha – queres ouvir-me? –
as vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura:

e ainda ouço a tua voz:
                Era uma vez uma princesa
                no meio de um laranjal...

Mas – tu sabes – a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
Dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.









ENTRE A SOMBRA E A NOITE, de Maria Alberta Melo e Castro
poeta portuguesa, do livro Cântico de Barro, republicado em
Palavra de Poeta, de Denira Rosário




Entre a sombra e a noite há um submisso
Instante de preparação.
Aberto espaço onde as aves não cantam,
imaculado,  instantâneo refúgio.
Entre a sombra e a noite, único passo!

- E é serena e frágil a presença
dos nossos vultos passageiros
isolados na própria condição.

Onde nada se move. Uma estrela suspensa.

E tão inutilmente despedaço do encanto,
e tão súbita me vem uma tristeza antiga,
que entre a sombra e a noite encontro o meu refúgio
- o intocável, único espaço.                                                                                                                                









FALO DO QUE É FÍSICO, poema de Ana Hatherly, poetisa portuguesa,
do livro A idade da escrita 



Falo do que é físico porque não tenho outra realidade.
Falo do corpo
do mundo
do que ainda não sabemos e chamamos divino.

Falo do que é físico
porque tudo que é real, tem corpo e ocupa espaço.

Falo disso
falo do que existe
e tudo é tanto que nunca chega o tempo
                        nunca chega o fôlego

Vejo até à asfixia
gente, coisas, o invisível.

Tudo me faz estar em permanente frêmito
sair para a rua de noite
e andar até cair de cansaço.
Pensando em tudo isso
extremamente sobreposto
como se uma grande dor não anulasse outra
como se fosse possível
pensar em mais de uma coisa de uma só vez
sentindo o simultâneo impossível
querendo abranger
a incontrolável velocidade dentro de tudo.

Corro por mim fora
como um grande atleta
campeão de barreiras e distâncias invencíveis
tentando vencer
mas tudo é enorme e intrincado 
tudo em mim são olhos vigilantes
sem jamais pálpebra.

Mas tudo isso não chega
Tudo é enorme
e morro tão depressa. 












4 TANKAS DE RAIMUNDO GADELHA, POETA PARAIBANO.
De livro inédito. 






O marinheiro
chora e faz do convés
seu confessionário...
O navio é templo
sob a luz das estrelas.




Pássaro, bateu
no transparente rosto
Um Deus de vidro,
mais que quebrar suas asas,
trincou o devido sonho.





Bela paisagem...
A lua enche o lago
Mundo transborda
O futuro a bordo
da criança que dorme.






Foi um lampejo
Estrelas desenharam
o rosto de Deus...
Tocou o despertador
Luz do dia, dor nos olhos.











A LUÍS DE CAMÕES, poema de Jorge Luis Borges,
escritor argentino, do livro Poesia Alheia,
poemas traduzidos, de Nelson Asher 



Sem dó nem ira o tempo embota a espada
heróica. Ao teu nostálgico país,
voltaste, oh capitão para, infeliz,
morrer nele – e com ele – sem mais nada.
Perdera-se no mágico deserto
a flor de Portugal e, sem demora,
o áspero espanhol vencido outrora
rondava ameaçador seu flanco aberto.
Quero saber se, aquém da derradeira
margem, tu compreendeste humildemente
que – de armas e bandeiras a Ocidente
e Oriente – tudo, enfim, que se perdera
tornar-se-ia (alheio à sina humana)
eterno em tua Eneida lusitana. 





3 poemas de Aurora da Graça, poeta maranhense,
do livro 
O Tempo guardado das pequenas felicidades




SOU MENOS


A cada instante
sou menos
desejo pouco
ouço mais que falo
penso mais que olho
leio mais que escrevo
sonho mais que durmo
morro mais que vivo
nada sou
não sou
ave
anjo
astronauta
com asas nas entranhas
meu destino se arrasta
entre as palavras
fora de mim
a voz pede poesia
dentro de mim
o verso obedece e se entrega.




                               MELANCOLIA


Meu dia se faz de ausências
Chuva de ontem e algum desejo.
Não preciso mover-me. Espero.
A qualquer momento encontrarei a alegria
Mesmo que não venhas.
Se eu te chamar, não ouças.
Não tenho oferendas.
As estrelas que te daria caíram no abismo antes
Que eu as recolhesse do teu olhar
Estrelas que lembram o mar e suas conchas
O mar de sal e ouro
Invasor de tua pele mergulhada nas manhãs
de minha ausência.

Abro gavetas onde ocultei sonhos
escolho algum, onde apareces com asas e desejo.

No fundo da caixa
carícias de veludo como chão.







RANHURAS NO AR

Na sala ampla
de poucos móveis
sou a mulher encostada no sofá

a que alonga seus braços sem tocar em nada
a mesma que se abstém d e olhar as paredes
vê para dentro
pálpebras cerradas

punhos fechados no vazio
cavar nas ranhuras do ar
depois...
aquietar-me
recolher-me
dormir
cercada de cores e desenhos
inquilinos das paredes.













3 POEMAS de Juan Ramon Jiménez, poeta espanhol 
na tradução de Manuel Bandeira, livro
Estrela da Vida Inteira 









O TESOURO

Quando a mulher está
Tudo é tranquilo, o que é
( A chama, a flor, a música).

Quando a mulher se foi
(A luz, o canto, a chama)
Tudo é, louco, a mulher.








A ÚNICA ROSA

Todas as rosas são a mesma rosa,
Amor,  a única rosa.

E tudo está contido nela,
Breve imagem do mundo,
Amor!  a única rosa. 









BRANCO

Branco, primeiro. De um branco
De inocência, cego, branco,
Branco de ignorância, branco.

Pronto verdeja o veneno.
Abre janelas o corpo.
O branco torna-se negro.

Guerra de noites e dias !
O vento assassina a brisa,
A brisa ao vento...

                                               Na brisa
Vem reconquistado o branco.
Branco verdadeiro, branco
Já de eternidade, branco.


























BANZO, de Raimundo Correia,
poeta maranhense


Visões que n’alma o céu do exílio incuba,
mortais visões! Fuzila o azul infando...
Coleia, basilisco de ouro, ondeando
o Niger...Bramem leões de fulva juba...

Uivam chacais... Ressoa a fera tuba
dos cafres, pelas grotas retumbando,
e a estralada das árvores, que um bando
de paquidermes colossais derruba...

Como o guaraz nas rubras penas dorme,
dorme em ninhos de sonho o sol oculto...
Fuma o saibro africano incandescente...

Vai co’a sombra crescendo o vulto enorme
do baobá...E cresce n’alma o vulto
de uma tristeza, imensa, imensamente... 








4 POEMAS de Viriato Gaspar, poeta maranhense, 
do livro A sáfara safra










O INQUILINO

há tanto tempo me habito
que até perdi o endereço.
vizinho, me desconheço,
estranho, sou-me adstrito.

habitante empedernido
do meu próprio estar em mim,
por hábito, me resido,
por vício, me vivo assim:

hospício, quartel, famílio,
um haver-se em precipício.






FREMILÚNIO
( a Paul Verlaine)

a lua virou de banda
a branca bunda de ar,
alva vulva, vela panda,
vagamente devagar.

depois, depôs-se  empoçada
nas nuvens, nua, a nuar,
se derretendo enredada
na morna murta do mar.
tecendo a lã delicada
do liz da luz, ali, lá,
toda lucilacerada
evaporou-se no ar.







O CARRAPATO
( a John Donne)

quantos mundos, já mudos, navegamos,
Tua mão apressada, me guiando;
e eu atrás ignorando teus reclamos,
distraído e cansado, resmungando.

Quantas vidas, assim, atravessamos,
eu atrás, Tu na frente, me puxando,
Tu, com pressa: eu, cansado e distraído.

Mas no escuro que escuto e me ofusca,
Tua mão se soltou, estou perdido. 

sou o escuro, Senhor.
                               volta e me busca





OS CÚMPLICES

sob o azul anzol da tarde arteira,
o vento erguendo a saia das palmeiras

( a vida assiste a tudo alcoviteira). 













NOVO ENIGMA PARA ÉDIPO
(MONÓLOGO A DUAS VOZES)
de Jean Tardieu, poeta francês. Do livro
Poesia Alheia, de Nelson Asher 



É coisa? – Não
Está vivo? – Sim
É vegetal – Não
Rasteja? – Às vezes, nem sempre.
Qual é sua postura? – De pé.
Voa? – Cada vez mais.
Ruge, muge, late, ladra, uiva, ulula? – Sim, quando quer,
                por imitação.
Sabe fazer ninhos para a cria? – Constrói todo tipo de alvéolos trêmulos.
Cava túneis subterrâneos?  - Sim, porque voa e tem medo.
Alimenta-se de frutas, de plantas? – Sim, porque é frágil.
E de carne? – Muitíssimo, porque é cruel.
Fala? – Demais, suas falas enchem a terra de barulho.
É portanto  leão tigre e ao mesmo tempo gado e ao mesmo tempo
                papagaio,  gato, cachorro, toupeira e castor? – Sim, sim, sim tanto isso
                tudo quanto ele mesmo e todos os outros.
Vive à noite ou de dia? – Vive à noite e de dia. Dorme às vezes
                de dia e trabalha à noite porque teme
                os próprios sonhos.
Pode ver e ouvir? – Vê tudo ouve tudo, mas tapa os ouvidos.
Que faz quando trabalha? – Ergue grandes muralhas para ocultar o sol. Fala,
                canta, resmunga, para encobrir o estrondo do trovão.
E quando não está fazendo nada? – Esconde-se. Treme com todos
                os membros sem saber por quê.
Dirige-se rumo a algo, alguém? – Penso que sim, finge ser
                chamado, escolhido, coroado.
É mortal? – Julga-se imortal, mas morre.
Gosta da morte? – Detesta-a, não a compreende.
Que faz contra a morte detestada? – Multiplica-a  dentro e fora de si
                por toda terra, no mar e no ar, espalha-a,
                nutre-se de vida, isto é, de morte.
Com todo esse massacre que quer ganhar? – Pensa perder de vista o fim,
                borrar o horizonte.
Que espera, afinal? – Sua morte, sua própria morte.
E quando sua própria morte, enfim, chegar? – Não a reconhece,
                pensa que é vida e prosternado, chora. 








3 EPIGRAMAS  de Marco Valério Martialis  (Bírbilis, Espanha, 38 d.c - 90 dc),
passou a maior parte da vida em Roma e é considerado o pai
do epigrama. Tradução de Rodrigo Garcia Lopes,
jornal Rascunho. 







VII, LXVII

Filênis machorra enraba garotinhos e,
Mais selvagem que um marido tarado,
Fode por dia onze menininhas.
Põe o calção e sai pra jogar bola,
depois da luta, amarela de pó, levanta fácil
um halteres pesado até pra um atleta.
Toda imunda do chão do ginásio
recebe uns tapas do oleoso massagista.
Ela não janta nem senta para comer
Sem antes vomitar seis cipós de vinho
E percebe que é hora de repetir a dose
Depois de traçar uns dezesseis bolinhos.
De novo com tesão, não faz boquete
(acha que isso é coisa de viado)
E sim devota a racha das meninas.
Filênis, que os deuses te deem cabeça,
Se acha coisa de macho chupar buceta.





V, XXXIV

Entrego a ti, Frontão, meu pai, e minha mãe Flacilla,
Esta criança, Erócion, delícia e luz de minha vida.
Que ela não tema as trevas do inferno
Nem a bocarra monstruosa de Cérbero.
Seria este o frio do sexto inverno
Se ela tivesse vivido mais seis dias.
Que ela agora brinque entre os seus protetores
E com voz gaguejante murmure meu nome.
Não pese em seus ossos, ó terra,
Ela que pisou tão leve em ti.







VI, XV

Na sombra do pinheiro uma formiga
Ficou presa numa gota de resina.
Se em vida não valia muita coisa
Seu funeral a fez linda e preciosa. 

















Os poemas Retrato em sépia e Blitz, são do livro
Desfamiliares, da poetisa Leila Míccolis


RETRATO EM SÉPIA
São poderosas as baratas:
as mulheres têm medo delas;
os homens provam seu poderio
sobre elas (as mulheres),
matando-as (as baratas).
No entanto, são meigas.
E se tivessem tetas
amamentariam
como qualquer mãe.

BLITZ

Gostamos da noite e saímos,
eu e as baratas,
mesmo encontrando sempre
um pé que nos achata.






4 hai-kais de Buson, poeta japonês
do livro O livro dos hai-kais, tradução de Olga Savary




Halo de lua:                                         
Não é o aroma da ameixeira florida    
nascendo no céu?                                
                                



Frio na alcova                        
ao pisar teu pente,                  
minha esposa morta              





 Faisão da montanha,           
  o sol da primavera               
pisa tua cauda                    




Vou-me embora                    
e tu ficas:                            
  dois outonos.                        












A ausência, de Ana Hatherly, poeta portuguesa,
do livro A idade da Escrita, e outros poemas



Oh como te ex-amo                                      
 como tudo se torna direção imprecisa          

É uma coisa terrível                                    
tudo ser tão evidente                                   
no seu vazio                                                
controverso                            
           verso                            

Seta por dentro                                           
a onda vive de perfil o seu ex-ato              
imprecisando as criaturas                           

Oh como o eu-outro aflora culminando     
falo contigo                                                   
 mas é um outro que contigo fala                
um outro                                                      
 que ex-amadamente arde ainda                  

Não vês a curva da parábola?                      

A face do amor é a ausência de rosto.         










O diâmetro da bomba, Yehuda Amihai, poeta israelense, 
do livro Poesia Alheia, de Nelson Asher


  Trinta centímetros era o diâmetro da bomba
cujo raio efetivo de ação                                
-cerca de sete metros -                                      
continha quatro mortos e onze feridos.        
E ao seu redor, aqui e ali, num círculo        
 mais amplo de dor e tempo,                         
 ha dois hospitais e um cemitério.                 
Mas a jovem enterrada em seu                    
lugar de origem                                            
a mais de cem quilômetros de distância     
 amplia consideravelmente o circulo.          
   E o homem solitário que,num canto remoto
   de um pais do além-mar, chora-lhe a morte 
  inclui no círculo o mundo inteiro.                
 Não vou sequer falar no pranto dos órfãos
que alcança o trono de Deus                       
e o ultrapassa, criando                                
um círculo sem fim, nem Deus.                  









De mulher para homem
poema de Ai Ogawa, poeta norte-americana,
tradução de André Caramuru


Um raio bate no telhado,                    
 enfia a faca, trevas,                             
fundo nas paredes.                              
Elas sangram luz por toda a parte      
 e seu rosto, o ventilador, se dobra,     
então eu não vejo com quanto medo 
você está de ficar comigo.                 
Nós não combinamos, nem na cama,
pra onde sempre acabamos indo.      
Não é preciso esconder isso:            
você é neve, eu sou carvão,              
eu tenho cicatrizes como prova.      
Mas abra a sua boca,                       
eu vou te dar um gosto de negra      
de que você não vai se esquecer .    
    Por um tempo, eu vou te deixar forte, 
fazer um leão do teu coração,         
e então eu vou pegá-lo de volta.      









Porque os poetas mentem:
motivos adicionais,
de Hans Magnus Enzensberger, poeta alemão.
Livro Poesia Alheia, de Nelson Asher


Porque o momento                                            
em que a palavra feliz                                        
é dita                                                                  
nunca é o momento da felicidade.                     
Porque o sedento não traz                                 
 aos lábios sua sede.                                            
Porque pela boca da classe operária                 
 não passa a expressão classe operária.               
Porque quem se desespera                                
não tem vontade de dizer:                                
"Estou desesperado."                                       
Porque orgasmo e orgasmo                             
 estão a mundos de distância.                            
Porque o moribundo em vez de declarar        
"estou morrendo" estertora apenas                 
um gemido baixo                                           
e para nós incompreensível.                            
Porque são os vivos                                       
que enchem os ouvidos dos mortos               
 com suas notícias atrozes.                               
Porque as palavras sempre chegam               
tarde demais ou cedo demais.                       
Porque é um outro,                                        
sempre um outro,                                           
quem fala                                                       
e porque                                                         
aquele de quem se fala                                   
silencia.                                                          



                    







Canção,de Louise Bogan,poeta norte-americana
do livro Poesia, Tradução e Versão de 
Abgar Renault



Ama-me que eu estou perdida;                        
 ama-me que eu sou apenas pó.                         
  Será heroico; homem algum o quis,                 
nem um só!              

Sê forte; olha-me o coração                            
como outros olham a minha face.                   
Ama-me; eu te previno: este é um lugar         
devastado e terrível!                                        









Matinal, de Maranhão Sobrinho, poeta maranhense
do livro Maranhão Sobrinho, poesia esparsa de 
Kissyan Castro



Domingo! Vamos entre abraços, Córa,            
 Como dois bons e espertos namorados,             
Ouvir, nos ramos, pelos campos fora,               
A orquestra azul dos pássaros dourados           

O matagal para nos ver se enflora                    
E há nas frondes cochichos estudados:            
Que dois de braços vão passando agora!          
E os poetas noivos, como são safados!            


Almoçaremos sob os bastos ramos                 
 Que atiram para a estrada os arvoredos,          
E sobre a relva dos caminhos, vamos!           

Domingo. Viva o sol sob a ramagem....        
Vamos, que à orquestra de teus passos ledos
Os próprios lírios te abrirão passagem          





          








Os homens são feitos de palavras, de Wallace Stevens,
poeta norte-americano, do livro, Poesia, Tradução e Versão
de Abgar Renault


Que seríamos sem o mito sexual,                                           
o devaneio humano ou poema de morte?                               


Eunucos da massa da lua...A vida consiste                            
em proposições sobre a vida. O devaneio                              

humano é a solicitude em que                                                
 compomos tais proposições, rasgadas pelos sonhos,              

pelas terríveis feitiçarias das derrotas                                    
e pelo medo de que as derrotas e os sonhos sejam um          
        
A raça inteira é um poeta que escreve                                   
as proposições excêntricas do seu destino.                            













Contra dicção, de Antonio Aílton, 
poeta maranhense, do livro Compulsão agridoce.


Há a bobagem generalizada                           
que a poesia mata o pensamento                    
Mas, dentre os que conheço, só o Alberto    
podia sem pensar ouvir o vento                     
                  
Ele mesmo deserto repensado                       
nado fruto de duplo sentimento                     
 quando a corda do arco retesado                    
fez da lua - seu lago esvaziado                      

Pensar é fundamento não razão                    
do mesmo modo que a poesia                        
 não é símbolo nem alegoria                           

 Poesia não é tampouco tradução                  
é outro modo que tem a consciência           
de preencher buracos da existência             













Mãe que levei à terra 
de Antonio Osório, poeta português,
do livro A ignorância da Morte


Mãe que levei à terra                        
 como me trouxeste no ventre,            
 que farei dessas tuas artérias?           
Que medula, placenta,                      
                        que lágrimas  unem aos teus                                    
estes ossos? Em que difere              
a minha da tua carne?                      

Mãe que levei à terra                       
como me acompanhaste à escola,    
  O que herdei de ti,                             
além de móveis, pó, detritos            
        da tua e outras casas extintas?                
Por que guardavas                           
o sopro de teus avós?                      

Mãe que levei à terra,                     
 como me trouxeste no ventre,          
  vejo os teus retratos,                         
 seguro nos teus dezenove anos,       
  eu não existia, meu Pai já te amava.
 Que fizeste do teu sangue,               
como foi possível, onde estás?       










MAU, de Gottfried Benn, poeta alemão, na tradução
de José Paulo Paes, livro Transverso, coletânea de poemas traduzidos, 


Quando não se sabe inglês algum,                       
ouvir falar de um bom policial inglês                 
 que não está traduzido em alemão                       

No calor, ver uma cerveja                                   
que não se pode pagar.                                        

Ter uma ideia nova                                             
                                          que não se pode embrulhar   num verso de Holderlin                                  

Viajar à noite                                                     
ouvir as ondas baterem                                     
 e dizer consigo que elas sempre fazem isso      

Muito mau: ser convidado,                              
    quando em casa os espaços são mais tranquilos ,
o café melhor                                                   
e nenhuma conversa é necessária.                    

O pior de tudo:                                                  
morrer sem que seja verão,                                
quando tudo está claro                                       
e a terra leve para a pá.                                      








Seis Quartetos em Si, de Jose Neumanne Pinto, publicado
na Revista Rascunho, edição de março 2016

A poesia é decerto uma loucura
Álvares de Azevedo
O poeta é um traidor
(apud Fernando pessoa)


A poesia é                                         
  o lugar comum                                   
  onde o poeta                                       
  ri de si mesmo.                                  
                                 
A poesia                                            
  é um pilar incomum,                         
onde o poeta chora                           
consigo mesmo.                                

A poesia                                          
    é um berço sem grades,                     
de onde o poeta                               
 sai para si mesmo.                           

 A poesia                                          
  é um buraco negro                         
onde o poeta                                  
trai a si mesmo.                            

A poesia                                       
 é um salto sem rede,                    
onde o poeta                                 
  cai sobre si mesmo.                       

A poesia                                       
    é um caixão sem tampa,                 
onde o poeta                                 
  encerra os seus mesmos.               






O MEL DOS OLHOS, de Lenita Estrela de Sá,
poetisa maranhense, do livro Pincelada de Dali,
e outros poemas



Derramar sobre teu corpo uma colmeia,                
o vinho de mil açucenas e gerânios                       
-delicada artesania desse amor lilás                       
confusão de cílios, entrefechadas pálpebras,         
gozo de abelhas embriagadas                                
zumbidos, tatalar de asas                                      
voo                                                                           
tesão parnasiano                                                    
 por teus olhos                                                         
 raptarei rimas raras                                              
   secretarei sonetos ardentes e castanhos.                










ASTROS E SAPOS, de Manuel Miranda, poeta
cearense, livro Sonetos Cearenses , de Hugo Victor


Eu não sei a impressão que tenho, se ouço
o concerto de orfeus batraquianos,           
toda noite a coaxar carmes insanos          
no gelado marnel de escuro poço             

Dos seus sonhos perdidos o destroço      
   choram varados pelos desenganos             
 ou no pântano vão, todos, ufanos,            
festejando noivados, com alvoroço?       

Não sei se são de dor, se de alegria,        
  essas vozes de sapos, de minuto               
a minuto ecoando, mas diria                  

serem pragas aos astros, o que escuto:   
que o desejo do sapo é ver um dia,         
as estrelas por terra, e o céu de luto.      
       







Soneto da primeira manhã, de José Chagas,
poeta paraibano - maranhense
livro A poesia maranhense no século XX.


Quero a manhã exata, a manhã viva                       
pois estas luzes e estes vôos,na aurora                   
são só ensaios de manhãs. E agora                         
 o que eu quero é a manhã definitiva,                       

 a autêntica manhã, pura, exclusiva,                        
manhã nascida de si mesmo e fora                        
 desta jubilação falsa e sonora                                 
que só por um momento nos cativa                       

 Ah, a manhã da última promessa,                         
 manhã de um novo mundo que começa,               
 mais accessível, mais humano e bom.                  

Meu Deus seria como chegasse                           
 a manhã do primeiro sol que nasce,                     
   da cor primeira e do primeiro som.                       










A beleza, 
poema de Charles Baudelaire, do livro
A melhor poesia do mundo, na tradução de Guilherme de Almeida



Sou mais bela, ó mortais, que um sonho de granito,
E meu seio, onde vem cada um gemer de dor,        
Foi feito para o poeta inspirar um amor                  
Semelhante à matéria, isto é, mudo e infinito         

      Reino no azul, como uma esfinge singular;                   
  Meu coração é neve e, ao mesmo tempo, arminho   
 Odeio o que se move e faz o desalinho,                   
E não sei o que é rir, não sei o que é chorar.          

 Os poetas, ante as minhas grandes atitudes,            
 Que aos monumentos mais altivos emprestei         
Consumirão o ser nos estudos mais rudes;            

Pois para esses servis amantes reservei                
Um puro espelho que é a mais bela realidade:      
Meu olhar, largo olhar de eterna claridade           








Do livro Poemas Escolhidos, de Emily Dickson, seleção
e tradução de Ivo Bonder



 Morri pela beleza, mas estava apenas                 
No sepulcro acomodada                                     
   Quando alguém que pela verdade morrera        
Foi posta na tumba, ao lado                              

  Perguntou-me, baixinho o que me matara:        
  "A beleza", respondi.                                            
  "A mim, a Verdade - são ambas a mesma coisa,
 Somos irmãos                                                      

E assim, como parentes que certa noite           
                                 se encontram,
 Conversamos de jazigo a jazigo,                       
Ate que o musgo alcançou nossos lábios          
 E cobriu nossos nomes                                       










Pedro Salinas, poeta espanhol, do livro O torso e o gato
tradução de Ivo Barroso


Perdoa se te vou assim buscando                          
tão torpemente, dentro de ti                                  
Perdoa se te doo, alguma vez.                               
  Mas quero arrancar de ti                                        
  teu melhor tu.                                                          
Este que não te veste e que desvendo,                  
   nadador por teu fundo, preciosíssimo.                   
E apanhá-lo                                                           
  para o erguer bem alto como faz                          
 a árvore com a luz última                                     
 que arrebatou do sol.                                             
E em busca desse tu                                              
  ao alto então virias.                                                
Para chegar ali                                                     
   subindo sobre ti, como te quero,                           
   tocando agora o teu passado, apenas                    
   com as rosadas pontas de teus pés,                       
 o corpo todo tenso, já ascendendo                       
 de ti para ti mesma.                                              
                                               

 E ao meu amor então responda                             
 a nova criatura que tu eras.   




                                 






AUTO-RETRATO, 
de Adailton Medeiros, do livro
        Lição do Mundo, 1992



Diante do espelho grande do tempo                 
 sinto asco                                                           
tenho ódio                                                        
descubro que não sou mais menino                 
                Aos 50 anos ( hoje - 16/7/88 (câncer) sábado - e sempre
  com medo olhando para trás e para os lados ) 
questiono-me (lagarto sem rabo ) ,                  
- como deve ser bom                                       
nascer, crescer, envelhecer e morrer              

Diante do espelho grande na porta                
       (o nascido no jirau: meu nobre catre) choro-me:
feito asno velhote pétreo ser incomunicável
sem qualquer detalhe que eu goste               
(Um espermatozoide feio e raquítico)          

Como nas cartas de tarô onde me leio         
       - eis-me aqui espelho grande quebrado ao meio










METEMPSICOSE
de Antero de Quental,poeta português,



Ardentes filhas do prazer, dizei-me!              
Vossos sonhos quais são, depois da orgia?    
Acaso nunca a imagem fugidia                      
do que fostes, em vão, se agita e freme?        

Noutra vida e outra esfera, onde geme          
outro vento e se acende um outro dia,           
                            que corpo tínheis? Que matéria fria                                           
vossa alma incendiou, com fogo estreme?    

Vós fostes nas florestas bravas feras             
arrastando, leoas ou panteras,                       
de dentadas d`amor um corpo exangue...     

Mordei, pois, esta carne palpitante,             
feras feitas de gaze flutuante...                    
Lobas! leoas! sim, bebei meu sangue!         







ALÉM  DAS NUVENS, de Weliton Carvalho, poeta maranhense,
do livro Escandalosa Lírica



Algumas mulheres não andam



l                        e


  v                                                          i     


            
t                                                             a



m
   










IMITAÇÃO DO TROVÃO

De Eugenio Montale, poeta italiano, do livro 
Poesias, na tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti


Todo mundo, parece,                                
imita um modelo                                      
   sem o saber, empresa descabida.                
Mas o pior ocorre com quem pensa         
 ver o seu por diante como uma estátua.    
             Não imitai o mármore, senhores. Se não podeis 
conter-vos, modelai-vos de pó,                 
 dos cabelos do vento, do raspar                
das cigarras, do inverossímil                    
 ribombar do trovão no céu sereno.           
Modelai-vos, digo, até do nada                
 se a ilusão tendes ainda de poder             
   roçar sequer a cópia daquela plenitude    
de que estais vazios!                                 












OS PASSOS DISTANTES

De Cesar Vallejo, poeta peruano, livro
O Torso e o Gato, na tradução de Ivo Barroso




Meu pai repousa. Seu semblante augusto            
semelha um aprazível coração;                            
 parece-me tão puro...                                            
 se há nele algo de amargo, serei eu.                      

Há solidão em toda casa, rezam;                         
não há notícia de seus filhos, hoje.                     
Meu pai desperta, atenta os olhos                      
à fuga para o Egito, o lancinante adeus.            
Parece-me tão próximo;                                      
se há nele algo distante, serei eu.                       

E minha mãe passeia nos jardins,                     
 saboreando um sabor já sem sabor.                  
Parece-me tão suave,                                         
tão asa, tão saída, tão amor.                             

Há solidão na casa silenciosa,                          
sem notícias, sem verde, sem infância.            
   E se há algo de quebrado nesta tarde,               
que baixa e que se parte,                                   
 são dois velhos caminhos curvos, brancos.       
 Por eles vai meu coração a pé.                           








                               


SONETO AO AMOR



De Manuel Gonzáles Prada, poeta peruano, traduzido por , 
Ivo Barroso, livro O torso e o gato





Serás um bem do céu ou simples dolo?                      
Se és um bem, porque as dúvidas e o pranto,              
A desconfiança, o remoedor quebranto,                      
  Longas noites febris de desconsolo?                             

 E se és um mal neste terrestre solo,                             
Por que os gozos então, o riso e o canto,                   
 As esperanças, o glorioso encanto,                              
 Visões ternas de paz e de consolo?                              

Se és neve por que tens tão vivas chamas?               
Se és chama porque gelas como o Norte?               
  Se és noite por que a luz do sol derramas?                 


Por que esta sombra se tens luz, querida?               
Se és vida por que me dás a morte?                        
E se és a morte por que me dás a vida?                   










NEUROLOGIA, de Carlos Garcia de Castro,
poeta português. Do livro Fora Portas


O que mais custa é sermos só memória                 
(poetas há que abusam da palavra)                       
porque a memória, para vocês lembrança,           
é coisa meramente cerebral                                  
que tem neurônios, linfas e sinapses                     
sem mais qualquer valia na esclerose                   
- É mais confusa do que persistente.                    

Do que mais custa sermos só memória                
são os afetos dela então esquecidos                    
que só a morte leva para os deixar,                     
sem nunca mais quem morre os ter consigo.        

Assim, parece que a memória é isso,                   
onde não há neurônios, nem sinapses.                  


Será que as almas podem ter um nome?              
              








OS SILÊNCIOS DA FALA, 
Maria Teresa Horta, poeta portuguesa, do livro
Palavras Secretas



São tantos                                  
   os silêncios da fala                        
                      
de sede                                        
de saliva                                      
de suor                                        

Silêncios de sílex                       
no corpo do silêncio                  

Silêncios de vento                      
de mar                                       
e de torpor                                

Depois há as jarras                   
com rosas de silêncio               

Os gemidos nas camas             

As ancas                                   
e o sabor                                   

O silêncio que posto                 
em cima do silêncio                  
usurpa do silêncio o seu magro 
                                   labor





             










Conclusão de um homem de 43 anos

dyl pires, do livro O Torcedor


chega um momento em que se percebe        
que as pessoas estão desaparecendo             
mais rapidamente do que você supunha       
a finitude começa a coincidir                       
com a beleza daqueles que construíram       
a história de tua intimidade                          
e tudo parece desde sempre ter sido            
somente memória da memória                    
que nasceu memória                                    











Invenção do Olhar
Rosa Alice Branco, poeta portuguesa
do livro Soletrar o Dia



Não digas que eu eu não estava à janela                
que não foi para ti o que não viste.                        
                   Há tanta coisa que não sabes, não digas.                                  
Um dia ver-me-ás à janela do ontem                    
com a roupa que hei de vestir amanhã.                 
                                 Até lá pensa que me sonhaste. Nem eu mesma sei                               
           o que fiz nesse dia.Mas a janela guarda os meus dedos
             como tu me guardas. O tempo é uma invenção recente. 
      Era uma vez essa mulher que viste. Retira o vidro,
   a moldura, e não te esqueças de abrir o horizonte.










UMA HARPA, de Nauro Machado, poeta
maranhense, de seu ultimo livro
O esôfago terminal


Vaginas são membranas                       
De rosas mais sanguíneas,                    
Como velhas cabeleiras                        

De anoitecidos himens,                         
Desabrochando com pétalas                 
De harpas submarinas                    













ALEGORIA SEGUNDA, do livro 
Vocação do Silêncio, Albano Martins, poeta português



De poetas e filósofos tu sabes,                                       
sabes também por ti. Por isso eu digo:                          
esta pedra é vermelha, esta pedra é sangue.                    
   Toca-lhe: saberás como em segredo florescem                 
as acácias ao redor dos muros, como fluem                   
                suas concêntricas artérias. Acaricia-as:                                          
tocas a parte mais sensível de ti mesmo.                      

       Dizias ontem que o verão ardia                                           
nesta pedra. Nela queimavas tuas mãos.                       
Onde as aqueces hoje? Eu digo:                                   
o verão não morreu, esta pedra é o verão.                    

E tudo permanece. E tudo é teu.                                   
Tu és o sangue, o verão e a pedra.                                 






                






ROSAS, ROSAS, ROSAS...
Maranhão Sobrinho, poeta maranhense


Rosas no céu, rosas nas cercas, rosas      
nos teus ombros e rosas no teu rosto,      
rosas em tudo, e há chagas veludosas      
 de rosas cor de rosa no sol posto...            

Florescem rosas de ais, maravilhosas      
nas róseas fontes, rosas no recosto          
de róseos montes se debruçam. Rosas     
                 em Abril, em Maio, em Junho, em Julho, e, Agosto.

Se há noivados há rosas nas redomas      
dos altares e há rosas invisíveis              
difundindo, no azul, róseos aromas.        

Se morre um anjo, às brancas nebulosas,
 leva, entre as mãos de rosas marcessíveis
rosas, fechado num caixão de rosas....   








O contágio da vida
Ronaldo Costa Fernandes, livro 
O difícil exercício das cinzas




Ninguém está livre da vida.                    
A vida é altamente contagiosa                
Há de se evitar as aglomerações            
como estádios de futebol ou shows        
onde a vida se multiplica                        
onde a vida é multidão                            

Não há remédio contra a vida                 
Em certos momentos de paz                   
ela se espalha                                          
como vírus vital                                     
ou tumor de felicidade                           

Não há repouso - pelo contrário -,         
prevenção ou medida sanitária.             
Ela mesma parece vitimar-se                 
do sono, do bem estar abundante           
e sobrevive muito forte                         
em ambientes limpos e higienizados     

Nada se pode fazer contra a vida           
Senão adoecer-se dela,                           
viciar-se nela, acostumar-se                   
com seus sintomas.                                 

Sendo assim, e só tendo a morte            
que a contenha,                                      
o paciente deve entregar-se                   
à moléstia da vida                                 
  e contaminar-se com a infecção do gozo
    que penetra primordialmente a alma,      
       lá onde cirurgião nenhum pode                  
                                      extirpá-la.












A Cópula, de Manuel Bandeira, livro 
Antologia Pornográfica, de Alexei Bueno


Depois de lhe beijar meticulosamente                    
O cu, que é uma pimenta, a boceta, que é um doce
O moço exibe à moça a bagagem que trouxe:        
               Colhões e membro, um membro enorme e turgescente         

Ela toma-o na boca e morde-o. Incontinenti,          
Não pode ele conter-se e, de um jacto, esporrou-se,
Não desarmou, porém. Antes, mais rijo, alteou-se  
E fodeu-a. Ela geme, ela peida, ela sente               

             Que vai morrer: - Eu morro! Ai não queres que eu morra?
Grita para o rapaz que, aceso como um diabo,     
Arde em cio e tesão na amorosa gangorra            

E, titilando-a nos mamilos e no rabo                    
(que depois irá ter sua ração de porra),                
Lhe enfia cona adentro o mangalho até o cabo.   





















Chapéu de vidro, de José do Carmo Francisco, poeta português
do seu livro Mansões Abandonadas. (A imagem da casa onde morou       
Aluísio Azevedo, que querem destruir para fazerem de            
estacionamento é uma evocação do blog)  



Tenho passado dias no meio das máquinas                    
que destroem casas antigas na cidade                            
para construir grandes blocos de cimento           

     Tenho atravessado ruas com automóveis                           
que anunciam comícios de logo à noite                     
com muitos slogans e roupas luxuosas                    

E o meu chapéu de vidro não se parte                          
porque resiste com forças escondidas                         
por detrás de tanta fragilidade                    

Tenho corrido muito atrás de autocarros                        
correndo também o risco de ser atropelado                  
pelos automóveis de quem me paga o ordenado         

Tenho dito muitas vezes no fim dos discursos                
- Energia nuclear? Não, muito obrigado!              
E já feria as mãos em Espanha, no arame         

E o meu chapéu de vidro não se parte                            
porque resiste com forças escondidas                            
por detrás de tanta fragilidade                       







Muchachas del Barrio, de Ivette Vian, poetisa cubana,
do livro Letras Cubanas



Son una multitud de diminutos sueños                                        
que tientan entre los juegos                                                         
y van hinchando el ansia de reinar,                                             
Luces que en las estrellas de sus frentes bailan                          
los cuatro pasos cardinales.                                                         
Son las cabezas euforicas del barrio                                           
perfiles perfectos de niñas tornasoladas                                     
atentos a la aparicion del Príncipe dos Lírios                            
que emergiera de murales extranjeros.                                      
A veces ellas pisan flores amarillas                                          
que transtocan el orden de los portales                                    
para que entre la felicidad.                                                      
A veces llevan anillos blancos y argollas negras                      
para invertir el dolor del amor.                                                 
                          Esas muchachas de trenzas duras y de cerquillos dorados                                 
    alzan sus manos anhelantes esperando que se retire el mar         
o que los autos lujosos florezcan en las esquinas                    
donde la basura declara tronos vanguardistas.                        








                                                   





O SUBMARINO, de Hamilton Elia, poeta carioca,
do livro O Mar na poesia brasileira


Ei-lo, altivo, à flor d`água, a amplidão devassando,      
prestes a mergulhar num primeiro momento.                
Lambe-lhe a espuma, o flanco e, a ulular, passa o vento
sobre o estreito convés, as ondas derramando               

Súbito, inclina a proa e, escotilhas fechando,
enceta a descensão no indevassado argento.  
Ninguém descobrirá o insidioso intento        
         que o leva a sepultar-se, assim, de vez em quando

Some-se. E, sob o mar, isento de suspeita,                   
flutua, enquanto, fora, o periscópio espreita,                
surpreendendo, à distância, um navio sem medo         

          Exulta o monstro de aço e despende um torpedo...
     Todo o mar se ilumina. E ele, emerge depressa,
pois não pode perder uma cena como essa!  







A Via Láctea, de Humberto de Campos


À noite, em viagem sob o céu de Estio          
Que alto, estrelado, num dossel se arqueia    
 Sem o claro farol da lua cheia                        
Pela estepe do mar, corre o navio                 

E atrás, na esteira , pelo céu vazio,              
A chaminé, a fumegar, semeia                      
 Uma ardente fumaça, que serpeia,                
E se perde na noite, como um rio                

Muito acima, no entanto, sem um rumo,     
Despertando a amplidão do seu letargo,      
Retalha o céu um turbilhão de fumo           

     Há uma estrela de luz no firmamento...          
- É o navio de Deus que passa ao largo     
Com o penacho de estrelas solto ao vento


    





Do livro Caronte e Memória, de Pedro Tamen
poeta português

I

Bem te conheço ó mascara                          
da vida, coisa louca ensinada                       
aos meninos sentados pelos bancos             
de pau entre outras loucas coisas,                
que dessas não conheço:                              
mas a ti, bem sei, conheço, que refazes       
em bom o que de mau gramamos nos anos  
esmifrados pelo tal que não sei - bem sei     
                que serás um só ruir dos olhos rasos e                         
do suor do amor nos lençóis que já,            
amarrotados molhados nos amarram,         
 mas só um bocadinho, pois logo virás tu,    
    supremo fingimento, macaqueação solene que
por muito que queiras, não podes disfarçar
a marca do silêncio indevido,                       
a sabástica ausência,                                    
o frio.                                                             

                     



O Mar, de Atílio Milano, poeta carioca

Poeta que sentas na areia                    
e fazes ao mar poesias,                        
o teu canto é o da sereia....                  
atrai com beijos a areia                        
às suas ondas macias ,                          
mas depois súbito alteia                        
o dorso em vagas bravias!                     
Não faças só uma ideia do mar              
que te enganarias, poeta                        
nas tuas poesias

Se hoje inspira a melopéia,                   
   o mar é autor de elegias...                       
Deu-nos Raymundo Corrêa?!              
roubou-nos Gonçalves Dias                







A cidade e o lago, Lourival Serejo, 
do livro , Pescador de Memórias, sobre a cidade de Viana


Uma mulher diante do espelho    
é como se comporta a cidade    
vaidosa                                     
embevecida                               
maquiada.                                  
O pecado não é da cidade         
é do lago                                   
desse espelho impertinente        
desse olho grande que vê           
sua intimidade completa             
 e depois corre pelo Gibiri afora  
            espalhando essa inconfidência sobre      
Ana: eu vi





O cemitério dos Passarinhos,
do livro Quando as noites voavam, de Jorge Tufic


Quanto mais leve o ar
mais agudo o som    

             À luz e cor pertence o meu dia,
vidrado e passaredo    

Ninguém sabe, contudo
para onde vão            
  estes pequenos esquifes
de alpiste e solidão















Currículo,
livro Memória dos Porcos, Ronaldo Costa Fernandes


Não fui criado para ser multidão             
Já tenho dentro de mim bastante gente    
Meus olhos têm vários crepúsculos ao dia
Não sei quando meus olhos estão           
no nascente ou quando estão no poente. 
Meu cérebro range ao trabalhar             
    deve ser falta de vida que o faz arranhado.
        A única vitamina que tomo para meu cérebro
é não pensar em mim.   








POEMA,
de João Machado, poeta maranhense


Eu trago poesias na palma da mão            
a cada amigo darei uma saudade               
Dá-me um abraço se não podes um beijo   
para colorir o coração e enfeitar as mágoas
e seguirei, leve e enigmático a uma viagem    
que me devolve os amores de criança         
Reencontro-me ensimesmado e tranquilo   
silencioso como o vento da madrugada      
às vezes me confundo com a brisa             
                                   não sossegada 
mas mantenho o círculo dos meus passos  
-Timoneiro eu sou                         
(que não me roubem a vida, que não me tirem
              a [ calma ] )

                                  


PALAVRAS 

Lisabeth Castro-Smith

Meu antepassado um dia fez um barco de palavras
para ver se o poder delas poderia levá-lo              
 de uma ilha para outra                                            

Ele começou dobrando jornais,                            
construindo uma canoa de papel...

Talvez não houvesse madeira                                
   talvez fosse um jogo de azar, jogado com o destino
ou um desafio para o mar

Dizem que ele viajou até o mar devorar letras     
faminto                       
por lágrimas, linguagem, idéias                           


porque o oceano é devorador                          
eterno lugar de descanso de gritos, sonhos e     
de todas as palavras que ele dobrou com mãos 
 esperançosas







A VIOLETA, de Bernardo de Almeida

Uma violeta nasce do silêncio               
captando em vão no azul de sua origem
a abstrata cor da primitiva flora             
apodrecida em pó, lodo e fuligem.         

      As mãos com que nas sombras precursoras
teceram roxas pétalas de sono             
agora pousam sobre um mar remoto     
isentas do labor de cada outono           

Um pensamento lhe mantêm acesa,      
precária ( e nisto) a náufraga beleza,    
sobre a erosão do devastado mundo   

Do mistério e o precário vive o artista 
e onde sucumba o dom, a fé conquista
a cor ausente desse azul profundo       









HIPOTENUSA
do livro Cidade Aritmética, do autor

A hipotenusa, por hipótese seria
    uma mulher dentro de um triângulo

 E por hipótese se soltaria           
viajando no próprio nome         
dos lados que a constrangem    
da fórmula que lhe limita           

e ainda por hipótese rasgaria 
o teorema que a cobre          
como um lençol

E não mais por hipótese       
mas em real
mandaria às favas, nessa noite
sua vida reta, retângula           

ainda que amanhã, bem cedo
no lar continue igual             
      à soma do quadrado dos catetos







Do livro Caronte e Memória, Memória Indescritível,
de Pedro Tamen, poeta português


Disseste: o sol nasceu                                     
Foi verdadeiramente  então, que o sol nasceu
e que nos habituamos todos a dizer                
que o sol nasceu                                               
Às vezes pensamos que acontece várias vezes
mas é uma ilusão de óptica que não nos deixa 
                                                              ver
 o grande círculo azul em cujo centro                
         tu dizes eternamente: o sol nasceu                           












TERRITÓRIO POÉTICO, de Marconi Caldas

Deverás descalçar tuas sandálias,
para que não esmagues as rosas do meu chão
Aqui não há lugar para os mesquinhos           
só para o homem azul vestido de ternura.       
Aqui há uma virgem dormindo na alcova   
de uma rosa: pisa de leve, não deves
despertá-la; esta é a pátria da                
serenidade, meu   território poético. 
       Não há dragões com chibata de fogo,                   
há carícias de mãos brancas
                e as rodas dos canhões nunca sulcaram                       
           minha terra.                                  
Deixa atrás de minhas fronteiras
a problemática do átomo e vem gravitar     
comigo na órbita do sonho.                        
  Aqui não há hoje, ontem, ou amanhã           
Aqui é o metafísico exercício
do ETERNO





FAROL, de Vitor Silva, poeta carioca, de único livro
Vitórias


Na amplidão do mar, entre as vagas, se apruma
o vulto do farol como uma sentinela                  
Estardalhaça o vento e a rugir, se encapela       
A água negra do mar, em turbilhões de espuma 

Enche a trágica noite, atroa e se avoluma          
Um insano clamor nas asas da procela!             
É a Morte! É ao temporal que as vagas atropela
Rodopiam as naus, na escuridão da bruma       

Mas súbito, um clarão, a espessa treva, inflama
Acende o mar bravio, ilumina os escolhos       
e guia o rumo às naus, contra os parcéis da Morte!


É a vida! É o farol escancarando os olhos,     
Vira e revira, em torno, as órbitas das chamas,
Ora ao Norte, ora ao Sul, ora ao Sul, ora ao Norte!









AURORA DE BRUMAS

Newton Belleza

A noite                                                    
parece                                                    
       sofreu hoje                                                     
           uma bruta insônia                                             
                                   
                   passou  o tempo todinho fumando!                              
                                             
   Agora de manhãzinha                                   
de cima do trem se vê                               
a onda grossa dos nuveiros que sobe
dos fundos dos vales aos cocorutos  
das montanhas                                   
                             
 Lá em baixo                                                  
   o chão está ainda cheio de pontas de cigarro
fumegantes ainda     




                                    









Rosas, Rosas, Rosas....

de Maranhão Sobrinho 

Rosas no céu, rosas nas cercas, rosas
nos teus ombros e rosas no teu rosto, 
rosas em tudo , e há chagas veludosas
de rosas cor-de-rosa no sol posto......

   Florescem rosas de ais, maravilhosas     
nas róseas fontes, rosas no recosto     
 dos róseos montes se debruçam. Rosas
                     em Abril, em Maio, em Junho, em Julho e em Agosto
  
  Se há noivados há rosas nas redomas    
dos altares e há roas invisíveis             
difundindo, no azul, róseos aromas.    

     Se morre um anjo, às brancas nebulosas,
          leva, entre as mãos de rosas marcessíveis    
rosas, fechado num caixão de rosas   
      



























do livro cidade aritmética, do autor


TANGENTE


O mar era ainda mais o mar
e o palpitar de tudo que era vida
batia no muro do céu e refletia
em sua amplidão e superfície


Um pássaro que sobrevoava
a longa calma em azul sobre a marinha, tombou
e do céu caiu oblíquo, projétil carnal de luz
ponte pênsil entre as amarras de espuma e nuvem
pedra dura em rota marítima pouca de destino


Mas, à medida  que afundava
as ondas se infestaram dos fantasmas
dos seus ossos, aquosos, cintilando
entre as espumas como vagas ou centelhas

Um músculo do mar moveu-se então
como um murmúrio de história
arrancado de entre as águas, ponto de ardor,
pleno de morte, partícula de sal tocada pela dor


e o pássaro continuou então sua trajetória
de onde há pouco pousara por descuido,
por um instante tangente
                                        a superfície do mar











FILA

Essa fileira de gente
Que vai do nada ao infinito
Por que são como formigas?

Não deve ser pela vida, pois a vida
que passa pelas formigas
aos números não se iguala

Nem tampouco pela ordem
que as formigas trespassadas
não enumera em pacotes

Deverá ser pelas asas, pelas luzes,
pela matéria e silêncio, pela água,
pelo tempo, pela fila disso, enfim
fila de tudo que gira

Mas ao final é só fila


Nenhum comentário:

Postar um comentário