domingo, 19 de outubro de 2025

UM BOM LIVRO SOBRE CAUSOS E COISAS DO MARANHÃO



 “Guerra da Amazônia e outros contos, de Valmir Seguins, foi lançado

semana  passada, 11 de outubro  na livraria da AMEI, shopping São Luís.”

 

 Ao ler os contos deste livro de Valmir Seguins, o leitor comum (aquele que compra o livro somente pelo prazer da leitura) jamais se pergunta se aquilo que está lendo é realidade ou ficção.

Sim, porque para ele não interessa se o fato descrito aconteceu de verdade, pois, seduzido pela narrativa, está mais envolvido em chegar ao final da história o quanto antes para desvendar o que o encadeamento dos acontecimentos lhe reserva de misterioso ou pitoresco, eis que, desde o primeiro conto lido, sabe que o autor lhe reserva algo desse tipo. Em suma, o leitor não está interessado na fidedignidade dos fatos porque ele segue motivado apenas pelo prazer de ler, no afã de consumir palavra por palavra, vírgula por vírgula, um conteúdo que lhe faz sorrir, refletir, ou recordar algo parecido com o que já presenciou ou viveu.

Ao ler esses mesmos contos o leitor de perfil mais literário ou acadêmico (aquele que exerce a leitura, também por um dever de ofício e que, portanto, adquiriu intuitivamente a inclinação investigativa de perscrutar o que está se passando nas entrelinhas entre o autor, o narrador e os personagens de sua criação),  aquele que tanto pode ser um mestre em literatura, um praticante de jornalismo  literário, um resenhista ou um bom escritor,  também a ele, jamais ocorre se perguntar, pelo menos enquanto estiver lendo,  onde começa a realidade e termina a ficção ou vice-versa. 

Sim, porque também ele foi seduzido pelos artifícios usados pelo autor Valmir Seguins que arrebataram o leitor comum, acima. Ou seja, histórias sempre interessantes e factíveis, por mais bizarros que possam parecer certos elementos do ambiente, picantes e, na maioria das vezes, divertidos, escudados por descrições minuciosas da geografia do local com riqueza de detalhes, tornando-as íntimas para o leitor. Inclusive as siglas de instituições ou organismos governamentais, que saltam da descrição dos fatos como se extraídas do profundo poço da memória de cada um, ainda ressoando familiares, trazidas do passado e incorporando-se aos personagens descritos.

Teriam sido reais? Mas, que isso interessa, de fato?  Talvez seja   uma artimanha do autor para dar credibilidade ao que está sendo narrado ou não, mas isso pouco importa para o leitor, seja    qual   for o seu tipo. O que interessa é que a arquitetura da narrativa se tornou de somenos diante da simplicidade e da objetividade do enredo; que vai direto ao ponto para, assim, primeiro granjear a atenção do leitor e, depois, conduzi-lo   à epifania final. Como um prédio bonito, diante de cuja visão impactante o transeunte se detêm para apreciar, mas a quem jamais ocorre indagar como o arquiteto fez para chegar a um monumento artístico.

                Pois é isso que distingue os contos deste livro: histórias bem contadas que arrebatam o leitor por caminhos pitorescos, curiosos e humanos, próprios da vida comum. Os personagens do autor, portanto, não são   de natureza heroica, são   apenas humanos, demasiadamente humanos, como disse o filósofo. Como, por exemplo, esse impactante e imprevisível personagem chamado Coisinha do conto com esse título: um magnífico representante dessa coisa abrangente e heroica chamada de ser humano.

            Já foi dito que a tarefa do romancista é chamar as coisas pelo devido nome antes de transformá-las em símbolos, o que parece um ótimo conselho a escritores interessados em criar algo como “a ilusão da realidade. ”

Percebe-se, de pronto, que o autor Valmir Seguins não está interessado nisso, embora possa estar fazendo isso, porque está pouco preocupado com a teoria literária. Ele quer simplesmente contar uma boa história explorando a riqueza humana de personagens como Coisinha, do conto com esse título, como o bêbado contumaz de O bêbado perdido,  como  o intrigado descobridor  Anacleto de  As tamboeiras de milho de Vaca Velha, como a maliciosa Aline do conto  Aline etc. Assim como nos mil   episódios de  Decamerão que fez a glória de Giovanni Boccacio, são histórias talvez contadas para o autor ou que ele viveu ou que imaginou, já que, como todo escritor atento ele tem asas para imaginá-las ou enriquecê-las. Sendo um precioso observador e tendo afinidade com o   “humano” como tinha o escritor italiano, é um pescador das riquezas cotidianas que concedem àquele que as interpreta e as propaga, a fortuna do dom de Deus das pequenas coisas, (se me permitem recorrer ao belo título do romance da indiana Arundhati Roy)  

Se Oscar Wilde um dia disse que a realidade imita a ficção muito mais que o vice-versa, estar no limiar dessa ambiguidade praticando o ofício de escrever e sair ileso das incursões nesse território, tornadas irrelevantes graças ao prazer da leitura que proporcionam, é o de melhor que pode acontecer a um escritor.  Esse, creio, é o tal do dom de narrar que segundo Mia Couto empobrece definitivamente aquele que não o possui.

Sendo assim o escritor Valmir Seguins é um homem rico, graças ao seu virtuoso manejo da arte narrativa, privilégio de   poucos. Como também são ricos os leitores que ganharam a fortuna prazerosa de se deliciarem com   essas páginas.  

José Ewerton Neto, romancista e poeta, pertence à Academia Maranhense de Letras, onde ocupa a cadeira 11. 

 

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

A BOCA ME TORNA A MAIS TRISTE




A boca me torna a mais triste ao lado dos olhos mortos.

Há uma linha escura entre os lábios, no contorno de várias ondas de brisa numa tempestade turbulenta — ela diz não me beije, não me engane. (...)

 sou uma dançarina que não sabe dançar.”

Os versos acima são de Marylin Monroe. Surpreso, leitor?

Provavelmente sim, já que, dessa atriz morta há mais de meio século, todos se recordam apenas como atriz sex symbol.

Que, no entanto, se chamava Norma Jean e não Marilyn Monroe, que era morena e não loura, e que estava mais para triste e solitária do que para a doidivanas de esfuziante felicidade que aparece em tantas imagens.

O fato é que o aparente paradoxo apelativo de alguém famoso e sedutor, com um final trágico, povoou as páginas de livros e filmes sobre a trajetória de uma mulher que não era infinitamente bela como a comoção a tornou, e que teria preferido, na sua intimidade, ter sido uma mulher comum com alguém que a compreendesse e amasse.

Meses atrás, surgiram na net fotos da atriz lendo Ulisses, de James Joyce, um dos maiores cânones da literatura. (Que nem todo escritor leu — e a maioria que diz ter lido, não leu).

Marilyn leu o romance ou posou de intelectual para compensar a impressão que passava de  “loura burra”? E que a fez se casar com Artur Miller, escritor consagrado, em mais um de seus amores desafortunados?

A breve leitura de seus poemas mostra que foi uma pessoa de sensibilidade singular, um ingrediente fundamental para ter sido uma artista na verdadeira acepção da palavra. E se inscreve no degrau daqueles que embora tivessem ganho muita grana, jamais tiveram isso como fundamental — como, mais recentemente, a cantora Amy Whinehouse.

Seus versos íntimos, feitos no recôndito de sua solidão, mostram isso: que Norma Jean não foi apenas a bela e sedutora Marilyn Monroe, mas uma mulher que buscava um sentido mais sólido para suas aspirações de vida — o que aumenta o progressivo fascínio em torno de sua trajetória como mulher e... artista.

Como disse após sua morte Arthur Miller, seu marido:

“Para sobreviver seria preciso que ela fosse mais cínica ou, pelo menos, mais próxima da realidade. Em vez disso ela era uma poeta na esquina, tentando recitar seus versos a uma multidão. ”


 

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

TRIBUTO A CLÁUDIA CARDINALE



A BELEZA MORRE (parte 3)

José Ewerton Neto

         “A atriz ítalo-tunisiana Cláudia Cardinale  foi  da época de ouro do cinema..

 

A primeira vez que usei esse título em uma crônica aconteceu quando faleceu em 2020 a eterna miss Brasil Marta Rocha, que durante muitos anos foi sinônimo nacional de beleza. Esse texto está no livro A verdadeira história de tudo e tudo mais, entre outras homenagens-biográficas resumidas.     

Depois, o mesmo título foi usado para Alain Delon em 2024 e, agora, vai para Cláudia Cardinale, ambos ex-atores de cinema.

A atriz ítalo-tunisiana Cláudia Cardinale é da época de ouro do cinema, quando este representava bem mais que a mera representação de um filme. Mais que isso, era um prolongamento das vidas dos espectadores em direção à ilusão, o glamour e a sedução.

Quando soube de sua partida definitiva, compartilhei com amigos e escritores o fato de que, das 5 estonteantes divas da época a beleza já morrera em Marylin Monroe, Elizabeth Taylor e, agora, em Cláudia Cardinale — permanecendo vivas, Brigite Bardot e Sofia Loren. Esta (para mim) a melhor atriz, e também a mais bela entre todas.  

Claudia Cardinale, que jamais chegou a ser uma atriz do porte de Sofia Loren e, nem mesmo, de Elizabeth Taylor, teve atuações marcantes em filmes inesquecíveis de grandes diretores como Era uma vez no Oeste e O leopardo, quando contracenou com Burt Lancaster — fita tão grandiosa quanto o romance que a originou, baseado em título do mesmo nome sobre a decadência de uma nobre família italiana.

Não há outro adjetivo que se cole mais à sua performance que não seja a pecha de “deslumbrante” quando movia seus traços fisionômicos a favor de sua desenvoltura teatral, em incursões arrasadoras.

Morreu nesta terça aos 88 anos, e deixa mais uma vez a sensação melancólica e desoladora de morte da beleza — esse atributo físico humano que Montagne afirmou ser apenas “...a promessa da felicidade”

Torço para que tenha sido assim — pelo menos enquanto durou, como disse o poeta Vinícius de Moraes — para alguém que a carregou com tanta desenvoltura.

Infelizmente, as belezas também morrem — não só as físicas —  e, quando se vão, morre também um pouco da ilusão e do    sonho de cada um dos que ficam.  

 

domingo, 3 de agosto de 2025

A FELICIDADE ANDA MEIO INFELIZ

ENCONTRO COM A FELICIDADE

José Ewerton Neto  

“E agora? Tem mesmo certeza de que vale a pena ser feliz, caro leitor?...”

 

Felicidade ou morte, ao invés de Independência ou Morte, por exemplo, é o título de um livro de autoajuda de muito sucesso.

Portanto, caro leitor, “Seja feliz ou morra” parece até ordem de alguma autoridade constituída deste país, sob pena de acabar na cadeia ou pagar mais imposto de renda, o que, convenhamos, é ruim, mas ainda é preferível a morrer.

         E agora? Tem mesmo certeza de que vale a pena ser feliz, caro leitor?

 Para resolver essa parada fomos encontrar a Felicidade. Ela própria, em pessoa. Estava pronta para desabafar.

         - Não aguento mais.

         - O quê, precisamente, Dona Felicidade?

         - Tanta gente atrás de mim. Tanta procura, tanta adulação, pensei que isso fosse acabar depois da Pandemia. Essa gente acha que virei o único remédio para as mazelas do mundo. E o pior é que   sequer se dão ao trabalho de querer saber quem sou. 

         - E quem você é?

         - Isso é o que eu gostaria de saber. Todos tentaram explicar em vão: filósofos, religiosos, cientistas...  Se felicidade é isso que todo mundo pensa que eu acabei sendo, desconfio de que eu mesma nunca fui feliz e   jamais serei.

         - Se a Sra. me permite, essa melancolia abate   depressa   pessoas sensíveis como a senhora.

         - Se fosse apenas isso... A questão é que, mesmo sem saber quem sou, de repente, me julgam capaz de resolver todos os problemas do mundo.   Até das mortes. Ora, eu não sou Deus! Definitivamente, estou possessa com tudo isso!

         -Poxa, dona Felicidade! Não sei o que dizer.... Talvez...  Bem, só me resta sugerir...

         - O quê, pelo amor de Deus!

         - Que tal procurar   um analista, Dona Felicidade? Isso pode ser depressão.

         - Jamais! Conheço-os muito bem: eles me usam como se eu fosse vacina. Dizem: “Procurem dona Felicidade, ela resolverá seus problemas”. Ora, para que servem então?

         - Hei de convir que a Sra. tem razão. Só desejaríamos que, pelo menos, a Sra. continuasse feliz, para o bem da humanidade.  Senão...

         - E quem lhe disse que me incomoda ser infeliz? Acredite, com tanta gente falando asneira a meu respeito, até que gostaria de ser infeliz, só para que me deixassem em paz, compreende? Estou prestes até a adotar um lema para mim: Infelicidade ou morte!

 

 

quinta-feira, 31 de julho de 2025

SOBRE UM POETA


 

SOBRE FRUTO FARPADO, de Kyssian Castro

José Ewerton Neto

 

...”É esse tipo de sensação que Fruto Farpado, de Kissian Castro,  nos provoca”...

 

Comentar ou fazer a apresentação de uma obra de arte requer para o sucesso   pleno dessa tarefa que algumas peculiaridades intrínsecas a essa obra sejam apontadas o que nem sempre é possível dada a abrangência e a intensidade de tudo o que se   publicou e se publica. Como seria bom poder dizer diante de uma obra que “Sim, há algo de novo, jamais dantes visto   sob o sol!”

Sobre essa dificuldade Gilberto Mendonça Teles em Retórica do Silêncio esclarece a distinção entre a crítica e o prefácio: (...) Produzido a partir da obra prefaciada, o texto do prefácio não parece, à primeira vista, diferenciar-se do texto de crítica literária: ambos são formas de metalinguagem, fazendo da obra literária ou não a sua linguagem-objeto. Existem, no entanto, diferenças relevantes entre as duas formas. E o próprio lugar do prefácio tem muito a ver com isso: rigorosamente falando ele não é feito para ser publicado fora do livro,   como se dá com o texto crítico: o seu lugar é dentro,  guardando relações de contiguidade metonímica com o texto principal, a que remete, num contato bastante íntimo, principalmente de conteúdo, a ponto de o prefácio às vezes não passar de mera síntese e funcionar apenas como um aperitivo, isto é um beberete destinado a abrir, despertar o apetite do leitor. (...)  

Pois esse “beberete”, no caso de tantos livros (e especificamente deste   Fruto Farpado de Kissisan Castro)  é facilitado, no  meu modo de ver,  primeiro pelo deslumbramento diante daquilo que se lê, vindo somente a seguir, a percepção de haver descoberto o que há de original na obra, a ponto de se sentir desperto por sensações inusitadas “Fascina-me em particular a forma de crítica que tenta descobrir um segredo não praticado antes por nenhum outro observador”.  Charles Rouen, músico e crítico literário.

No caso de Fruto Farpado, a mim ofertado pelo poeta, poupo-me ao trabalho de expressar a sedução que surge diante de versos como esses a seguir.... Como não ser arrebatado por vozes que dizem!   

(...) procurar as palavras para lhes dar nomes... / palavras colhidas  na fúria  de palavras sem ideias ...Chegar antes das ideias.   Bouchetiana.

Ou em Gravata (...). Há um poema em volta de mim, na minha cola.  Afoito,  evito aquilo que depois se joga fora.

Ou em Peso

O apuro dos gritos mastiga meu sono/ e estou só.../ amparado por esse verso mínimo, quase palavra.

Essas vozes destacadas do conjunto é que distinguem a poesia de Kissian do que comumente se vê em tantos trabalhos. Quando certas vozes não soam tão vibrantes a ponto de brilharem como independentes de sua aparente missão de serem coerentes com o título e o   conjunto, surgem para o leitor, especialmente aquele menos afeito ao traquejo poético, como contradições que tendem ao hermetismo e ao incompreensível. Não se trata aqui apenas da ambiguidade que é própria do exercício poético, ou ao uso de metáforas peculiares ao gênero, são vozes que no caso dessas poetas buscam explicação porque caíram fora do silêncio que há entre a palavra e seu significado, enfim, porque, no caso, o poeta não conseguiu ser senhor desse silêncio que, durante a leitura, tanto pertence ao leitor como ao autor quando estão em sintonia.  

A literatura verdadeira é aquela que se sabe essencialmente linguagem, é aquela procura de um estado intermediário entre as coisas e a palavra, é aquela tensão de uma consciência que é ao mesmo tempo levada e limitada pelas palavras, que dispõem através delas de um poder ao mesmo tempo absoluto e improvável “ Roland Barthes.

O poema inicial que dá título ao livro, por exemplo, já anuncia esse traço da poética de Kissian. A ambiguidade necessária a todo poema não é explícita, mas sugerida, e não surge no todo monolítico ou através de um título capaz de explicar sua presença na arquitetura do poema. Tem significados intencionais ao pertencimento do autor, mas estão disponíveis ao leitor para serem capturados.

(...) o tempo me apalpa cavando fundo/ contudo ergo a cabeça e o  azul banha meus olhos.

Assim, Kyssian não é o poeta dos devaneios, das metáforas e dos sonhos, mas da realidade nua, crua e plural que se nutre de uma ambiguidade, como sabemos, própria do sentido de vida humano e de suas perguntas e repostas não equacionáveis -  que se interpenetram nos edifícios da realidade. Como se fosse Kyssian Castro um poeta dotado de lâminas-vivas em forma de versos para duelar nessa proximidade, que não é a arena da realidade e sequer dos devaneios. Kyssian foge desses extremos para brandir poemas que pairam em torno da verossimilhança de quem não busca a beleza escancarada e fotográfica, mas a beleza que há no silêncio das coisas.

Poeta não é o que fala em verso sobre as flores, os animais da terra, as aves do ar, os peixes, as águas, os capacetes dourados das nuvens ao por do sol. Poeta é o que expressa, através da palavra as imagens do mundo, exterior e objetivo, alteradas quando se internalizam no mundo interior e subjetivo de cada homem, dando-nos uma terceira visão dessas imagens: a visão mágica da realidade. ”  César Leal

Que alegria então em haurir a palavra do poeta, em sonhar com ele, em acreditar naquilo que ele diz, em viver no mundo que nos oferece, ao colocar o mundo sob o signo do objeto, de uma fruta do mundo, de uma flor do mundo! Gaston Bachelard .

É esse tipo de sensação que Fruto Farpado, de Kissian Castro,  nos provoca.

 

                                                                                   José Ewerton Neto é romancista, poeta e membro da Academia Maranhense de Letras.

segunda-feira, 30 de junho de 2025

segunda-feira, 23 de junho de 2025

MOÇA COM BRINCO DE PÉROLA


“ Um dia uma folha me bateu nos cílios. Achei Deus de uma grande delicadeza. ”  Clarice Lispector.

 

MOÇA COM BRINCO DE PÉROLA é o retrato de uma camponesa pintada por Vermeer e se considera um dos seus mais célebres quadros. A pintura nos comove por vários motivos, mas nenhum deles   avança   em direção ao reino das impressões indescritíveis (que todos temos) em velocidade maior do que a delicadeza que emana de todo o quadro.

A mulher não tem um rosto de beleza extraordinária, talvez nem possa ser chamada de bela. O rosto, pequeno, carece de intensidade para chamar a atenção de um olhar desatento. Seus cabelos, cobertos por uma touca, parecem cumprir a obrigação de humildade, coerente com seu destino de moça pobre. No entanto, cabeça virada para trás em direção àquele que a contempla, ela fita demoradamente e continua fitando sem parar como se quisesse contar uma história, a sua história, a história de sua – agora sim extraordinária – delicadeza.

Como contar essa história partindo apenas do seu silêncio e de seu olhar que fita? Como fazer a sua delicadeza mover-se?

A escritora Tracy Chevalier se propôs à primeira parte dessa trajetória quando romanceou Moça com brinco de pérola. São delas as palavras “Quando contemplei o retrato, tentei imaginar o que Vermeer fez a ela para ficar assim, alegre e triste ao mesmo tempo. Um belo dia tive a compulsão de escrever a sua história. Fiz o romance em três dias. O diretor Peter Weber se propôs à segunda.

Os atores principais escalados para o filme foram Scarlet Johansen com Griet (a moça do brinco) e Colin Firth como Vermeer. Não li o livro ainda. No filme a história é de uma serviçal   escolhida pelo pintor para servir-lhe de modelo. A carga de empatia erótico-artística que se estabelece entre ambos provoca a ebulição de sentimentos de ciúme e inveja na esposa e filhos.

Quem nunca leu o livro ou tinha conhecimento do quadro de Vermeer pode ter a sensação de que a história é anterior ao quadro ou posterior, ou independente dele, até mesmo de que é uma ficção, como foi a intenção da escritora. No entanto, para quem conhecia o quadro, a partir da arquitetura montada pelo diretor vê-se que não há independência entre eles. Perdura no filme o mesmo tom de cores esmaecidas, os diálogos silenciosos, onde as expressões dizem mais do que as falas, o sufocante dos sentimentos ocultos e contidos e, predominante a todo instante, a delicadeza em ação através da formidável atuação de Scarlet Johansen como uma espécie de obra de arte ambulante, que sai do quadro e se movimenta ao longo de duas horas de fita.

Quando se diz que não há ficção, isso seria apenas uma força    de expressão, não tivesse o diretor alcançado o objetivo a que se propôs acima, de traduzir para o cinema uma obra de arte anteriormente já traduzida – para o livro. De fato, muitos experts da arte contemporânea hoje falam como se a história romanceada pela escritora tivesse existido realmente. E por que não teria? Que é a sina humana mais que a busca incessante de sufocar a inexorabilidade da morte com a ilusão da eternidade até que isso se torna realidade?

Traduzir o sentimento não dito eis o maior mérito do contador de histórias. Em entrevista o escritor moçambicano Mia Couto disse que o ser humano que não sabe narrar uma história é pobre de alguma maneira. No final do filme de Peter Weber a pintura de Vermeer substitui a atriz em cena e toma conta da tela substituindo a ação. O espectador, extasiado, não fica sem entender. A moça do brinco de pérola finalmente viveu a sua história. Agora já pode retornar ao quadro.