quinta-feira, 31 de julho de 2025

SOBRE UM POETA


 

SOBRE FRUTO FARPADO, de Kyssian Castro

José Ewerton Neto

 

...”É esse tipo de sensação que Fruto Farpado, de Kissian Castro,  nos provoca”...

 

Comentar ou fazer a apresentação de uma obra de arte requer para o sucesso   pleno dessa tarefa que algumas peculiaridades intrínsecas a essa obra sejam apontadas o que nem sempre é possível dada a abrangência e a intensidade de tudo o que se   publicou e se publica. Como seria bom poder dizer diante de uma obra que “Sim, há algo de novo, jamais dantes visto   sob o sol!”

Sobre essa dificuldade Gilberto Mendonça Teles em Retórica do Silêncio esclarece a distinção entre a crítica e o prefácio: (...) Produzido a partir da obra prefaciada, o texto do prefácio não parece, à primeira vista, diferenciar-se do texto de crítica literária: ambos são formas de metalinguagem, fazendo da obra literária ou não a sua linguagem-objeto. Existem, no entanto, diferenças relevantes entre as duas formas. E o próprio lugar do prefácio tem muito a ver com isso: rigorosamente falando ele não é feito para ser publicado fora do livro,   como se dá com o texto crítico: o seu lugar é dentro,  guardando relações de contiguidade metonímica com o texto principal, a que remete, num contato bastante íntimo, principalmente de conteúdo, a ponto de o prefácio às vezes não passar de mera síntese e funcionar apenas como um aperitivo, isto é um beberete destinado a abrir, despertar o apetite do leitor. (...)  

Pois esse “beberete”, no caso de tantos livros (e especificamente deste   Fruto Farpado de Kissisan Castro)  é facilitado, no  meu modo de ver,  primeiro pelo deslumbramento diante daquilo que se lê, vindo somente a seguir, a percepção de haver descoberto o que há de original na obra, a ponto de se sentir desperto por sensações inusitadas “Fascina-me em particular a forma de crítica que tenta descobrir um segredo não praticado antes por nenhum outro observador”.  Charles Rouen, músico e crítico literário.

No caso de Fruto Farpado, a mim ofertado pelo poeta, poupo-me ao trabalho de expressar a sedução que surge diante de versos como esses a seguir.... Como não ser arrebatado por vozes que dizem!   

(...) procurar as palavras para lhes dar nomes... / palavras colhidas  na fúria  de palavras sem ideias ...Chegar antes das ideias.   Bouchetiana.

Ou em Gravata (...). Há um poema em volta de mim, na minha cola.  Afoito,  evito aquilo que depois se joga fora.

Ou em Peso

O apuro dos gritos mastiga meu sono/ e estou só.../ amparado por esse verso mínimo, quase palavra.

Essas vozes destacadas do conjunto é que distinguem a poesia de Kissian do que comumente se vê em tantos trabalhos. Quando certas vozes não soam tão vibrantes a ponto de brilharem como independentes de sua aparente missão de serem coerentes com o título e o   conjunto, surgem para o leitor, especialmente aquele menos afeito ao traquejo poético, como contradições que tendem ao hermetismo e ao incompreensível. Não se trata aqui apenas da ambiguidade que é própria do exercício poético, ou ao uso de metáforas peculiares ao gênero, são vozes que no caso dessas poetas buscam explicação porque caíram fora do silêncio que há entre a palavra e seu significado, enfim, porque, no caso, o poeta não conseguiu ser senhor desse silêncio que, durante a leitura, tanto pertence ao leitor como ao autor quando estão em sintonia.  

A literatura verdadeira é aquela que se sabe essencialmente linguagem, é aquela procura de um estado intermediário entre as coisas e a palavra, é aquela tensão de uma consciência que é ao mesmo tempo levada e limitada pelas palavras, que dispõem através delas de um poder ao mesmo tempo absoluto e improvável “ Roland Barthes.

O poema inicial que dá título ao livro, por exemplo, já anuncia esse traço da poética de Kissian. A ambiguidade necessária a todo poema não é explícita, mas sugerida, e não surge no todo monolítico ou através de um título capaz de explicar sua presença na arquitetura do poema. Tem significados intencionais ao pertencimento do autor, mas estão disponíveis ao leitor para serem capturados.

(...) o tempo me apalpa cavando fundo/ contudo ergo a cabeça e o  azul banha meus olhos.

Assim, Kyssian não é o poeta dos devaneios, das metáforas e dos sonhos, mas da realidade nua, crua e plural que se nutre de uma ambiguidade, como sabemos, própria do sentido de vida humano e de suas perguntas e repostas não equacionáveis -  que se interpenetram nos edifícios da realidade. Como se fosse Kyssian Castro um poeta dotado de lâminas-vivas em forma de versos para duelar nessa proximidade, que não é a arena da realidade e sequer dos devaneios. Kyssian foge desses extremos para brandir poemas que pairam em torno da verossimilhança de quem não busca a beleza escancarada e fotográfica, mas a beleza que há no silêncio das coisas.

Poeta não é o que fala em verso sobre as flores, os animais da terra, as aves do ar, os peixes, as águas, os capacetes dourados das nuvens ao por do sol. Poeta é o que expressa, através da palavra as imagens do mundo, exterior e objetivo, alteradas quando se internalizam no mundo interior e subjetivo de cada homem, dando-nos uma terceira visão dessas imagens: a visão mágica da realidade. ”  César Leal

Que alegria então em haurir a palavra do poeta, em sonhar com ele, em acreditar naquilo que ele diz, em viver no mundo que nos oferece, ao colocar o mundo sob o signo do objeto, de uma fruta do mundo, de uma flor do mundo! Gaston Bachelard .

É esse tipo de sensação que Fruto Farpado, de Kissian Castro,  nos provoca.

 

                                                                                   José Ewerton Neto é romancista, poeta e membro da Academia Maranhense de Letras.