domingo, 26 de maio de 2019

A VERDADEIRA HISTÓRIA DO PUXA-SAQUISMO





Quando Deus resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança sem utilidade prática futura para ele, deu margem a que, muitos séculos  depois, poucas dúvidas restem de que fez isso apenas porque lhe faltava um puxa-saco.
Sim porque se a solidão tem suas vantagens,  tem  também seu lado ruim como sentenciou Montagne: “A solidão  traz coisas boas. O problema é que você precisa de alguém do lado para dizer isso”. Pois imagine a situação de Deus, o todo poderoso, sem ter do lado um mísero alguém,  para lhe enaltecer possuindo tanta grandeza.
Sim, porque as estrelas são maravilhosas e poéticas, mas não falam. Mesmo podendo ler o pensamento de tudo, isso não era tudo. Faltava a Deus a bajulação pura e simples,  transmitida através da fala.
2.Foi então que Deus criou o homem, ordenando a ele : “Amarás o senhor teu Deus acima de todas as coisas com todas as forças de tua alma”.
Acontece que a coisa (o ser humano) não se saiu tão bem quanto ele esperava. Ao invés de puxarem o saco de Deus, Adão e sua mulher Eva, preferiram bajularem-se entre si, permitindo, inclusive, o surgimento de outro elemento bajulador, no caso, uma serpente malévola. Esta insinuou a Eva que puxar o saco de Adão (literalmente) lhe daria mais prazer do que bajular a Deus, despertando-os para o sexo e o pecado.
Irritado, Deus os expulsou do paraíso: “Vão puxar o saco de vocês mesmos no inferno, não aqui!” E, assim, o inferno se instalou para os homens, inclusive na forma do puxa-saquismo, prática na qual a humanidade veio a atingir a perfeição.

2. Isso aconteceu no antigo Egito. 







Haja puxa-saquismo!,  em uma civilização que durou mais de 3 mil anos. A postura por lá era ‘Não existe defeito, então nada carece consertar’. Conformismo? Não, puxa-saquismo, porque a cadeia de direitos e deveres era baseada numa escada sem mobilidade social, onde a bajulação assumia um aspecto tão formal e rígido quanto a hierarquia de onde se originava.
No topo estava o Rei-Deus, o Faraó, e abaixo dele, o vizir, os dignitários reais e os governadores oriundos da nobreza, e depois o resto. A bajulação era impessoal e monumental. As pirâmides, os mais grandiosos túmulos que o mundo jamais viu são tributos à insaciabilidade da satisfação humana. Os reis do Antigo Egito não eram servos dos deuses, mas deuses eles próprios. Em 1500 a.c um servidor público egípcio escreveu a respeito do rei. “Ele é um Deus por quem todos vivemos, o pai e a mãe de todos os homens, único em sua condição sem igual”.
Tente superar essa bajulação!

3. Um elogio assim era tudo o que Deus queria para si quando fez os homens. Atingido, no Egito, o clímax do puxa-saquismo,   de lá para cá foi só aperfeiçoamento. O que são os livros de autoajuda, hoje,  mais do que uma exaltação da bajulação a  si mesmo?
Isso traz a certeza de que, em breve, quando a civilização humana virar pó, sobrará como característica mais marcante  do gênero humano o puxa-saquismo. E nos confins do Universo, onde toda memória do Mundo estiver concentrada, quando alguém clicar no verbete Terra surgirá a informação: “Existiu nesse minúsculo planetinha uma espécie que, criada à imagem e semelhança de Deus para o exaltarem, preferiram inventar a si mesmos como deuses, para bajularem-se entre si”.
Não podia ter dado certo.


José Ewerton Neto é autor de O oficio de matar suicidas
                                                           ewerton.neto@hotmail.com 




segunda-feira, 13 de maio de 2019

A VERDADEIRA HISTÓRIA DO CHEIRO



artigo publicado no jornal O estado do Maranhão




“O homem é o  único animal que não gosta do próprio cheiro”, dizia Millor Fernandes, assim resumindo  a solitária diferença que nos distingue dos demais animais. Sim, porque o cérebro maior e mais inteligente que possuímos não nos distingue tanto assim, já que no resto somos quase iguais.  A ciência mostra que o nível genômico da espécie humana atinge a extraordinária semelhança de 95 a 99 % ao dos chimpanzés.
Resta especular se essa diferença não foi construída pelos humanos apenas como forma de se destacarem dos outros animais. Mais ou menos como se, a partir de determinado momento de sua curta trajetória geológica, os homens resolvessem se perfumar como uma forma de dizer a si mesmos: “Tá vendo? Somos, de fato, superiores aos outros animais, tanto assim que não fedemos como eles.”
A história comprova essa tese, já que somente de pouco tempo para cá, os homens passaram a rejeitar o próprio cheiro. Basta ver como procediam nossos tataravôs em seus ambientes, mesmo os supostamente mais refinados.  
Por exemplo, a higiene do palácio de Versalhes no século 17 era de “lascar” para os padrões de hoje. O corpo inteiro das pessoas só era lavado uma vez por ano e para se limpar bastava lavar as mãos e o rosto.  Nessa ocasião a família inteira se banhava no mesmo barril e com a mesma água. A urina era despejada pelas janelas, a limpeza íntima era feita com sabugos de milho ou com as próprias mãos, as necessidades eram feitas em qualquer lugar indo parar nos corredores e jardins. Um decreto de 1715 dizia que as fezes deveriam ser retiradas dos corredores uma vez por semana.
Na Roma Antiga os banheiros públicos eram frequentados sem distinção de sexo. Nesses espaços não havia preocupação em oferecer material para higiene íntima. As pessoas se viravam com o que estivesse à mão, como água, grama e até areia. E – pasmem! -  era nessas latrinas coletivas, instaladas em grandes barricadas de pedra,  que se promoviam debates , banquetes, e encontros cívicos.







Por aí se vê que o fedor não incomodava tanto quanto hoje. E que a porcaria que saia pela parte de baixo era menos inofensiva do que a que  hoje sai, pela boca,  dos que se reúnem em ambientes palacianos para tomar   grandes decisões administrativas.
Quanto aos outros animais, estes  continuam ‘cagando  e andando’ para o próprio cheiro, o que não significa dizer que sejam menos limpos. A barata, por exemplo, tida como um animal fétido e repulsivo tem o seu exterior extremamente limpo, mais higiênico que o rosto de muita coroa habituê de coluna social, entupido de creme, loção e botox.
A sujeira das baratas, é bom saber, restringe-se ao seu interior, mais exatamente ao seu sistema digestivo. É lá que ficam os vírus e as bactérias que são expelidos em seu cocô e podem causar infecções. Portanto, se tiver coragem, caro leitor(a),  pode aplicar  um beijo na couraça de uma barata,  que isso não lhe trará problema algum.
Tudo indica que a anunciada substituição dos homens pelas máquinas, prevista para breve, apresentará pelo menos uma vantagem evolutiva. Estas jamais terão nojo do  próprio cheiro.


José Ewerton Neto é autor de O ofício de matar suicidas


Este e outros livros do autor serão comentados  no primeiro encontro do Clube de Leitura da AMEI, shopping São Luis, dia 18, sábado às 10 h

segunda-feira, 6 de maio de 2019

O JORNAL E EU




Artigo comemorativo aos 60 anos do jornal O estado do Maranhão e publicado no caderno especial do dia 1 de maio de 2019 

Alvorece. Um mendigo estirado na calçada e encostado ao batente de uma loja  permanece indiferente aos transeuntes que passam. Até que, num gesto brusco,  levanta a cabeça, sacode os ombros e se senta. Em seguida, passa as mãos nos cabelos desgrenhados, enquanto se liberta dos andrajos que o cobrem. Toma de uma velha mochila ao seu lado e procura algo em seu interior. Desiste e mete, freneticamente, as mãos no bolso. Agora sim, parece ter achado o que procura.








Meio desorientado, como se ainda estivesse sob o efeito do sono,  busca com o olhar localizar algo. A câmera que filma o episódio muda o foco para a paisagem ao redor e mostra, na esquina, uma banca de revistas, para onde, agora, ele se dirige a passos trôpegos. Entrega alguma coisa na ponta dos dedos para o dono da banca e retorna com algo. Esse algo, que põe debaixo do braço e acabou de comprar em troca de algumas moedas é um jornal.  
De novo no batente da loja, que ainda não abriu, senta-se. A câmera foca o rosto do mendigo, absorto, por trás do jornal. Seus instantes de leitura são registrados pela câmera, enquanto o mendigo permanece concentrado,  longe de sua vida difícil, enquanto a Terra e seu satélite giram, giram as pessoas e o mundo todo, inclusive aqueles que passam apressados diante dele,  quase a pisoteá-lo. Durante esses alguns minutos nada existe, para ele, além do que lê no jornal.  
Essa cena, registro da primeira preocupação de um mendigo em sua primeira ação do dia,  mais forte que a fome, mais forte que a pobreza, mais forte que a carência afetiva e social perpetuou-se em minha mente depois que a vi, na televisão. Não lembro exatamente quando e em que programa aconteceu, só recordo que se deu na Argentina. Talvez tenha sido uma cena fortuita, sequestrada do cotidiano e o objetivo nem tenha sido o de enfatizar a busca da leitura como primeira ação do dia.
Ao ser convidado para escrever sobre o aniversário de 60 anos do jornal o Estado do Maranhão, lembrei-me desta cena e a localizei como ponto de partida para a tradução dessa empatia que, como a do mendigo, se estabeleceu de mim para com os jornais a partir de certo momento da minha juventude. Já disse a amigos mais íntimos ou familiares que os melhores momentos de minha vida não foram viagens, idas a restaurantes, baladas ou  carnavais, mas os instantes em que, livre da azáfama do trabalho como engenheiro metalurgista, então no Rio, depois em Minas ou Salvador, adquiria o Jornal do Brasil, o Globo ou O estado de São Paulo, em dia de feriado e, sem preocupação com o tempo, pegava do jornal e isolado em algum canto de uma lanchonete ou bar , lia as notícias que me interessavam: de política, esporte, cinema e, em especial os cadernos de literatura para depois garatujar escritos sonhando com o dia em que poderia ser lido por alguém ou ler a mim mesmo nas páginas de um jornal.   
Sim, porque somente comparável à alegria de ler é a de se ver publicado, principalmente quando isso é inusitado, o que me aconteceu pela primeira vez em tempos mais remotos quando, estimulado pelo saudoso Erasmo Dias, enviei um poema intitulado A Chamada para as páginas do Jornal Pequeno. Imaginem essa alegria multiplicando-a pela esperança juvenil, esse sinal de operação/transformação que, mais na vida que na matemática,  tem a capacidade de acelerar os sonhos.
Soa redundante, então, enfatizar como sou grato a este periódico que me proporcionou a segunda parte desta realização há mais de 25 anos, primeiro como colaborador eventual e depois assíduo.  Por isso me considero também aniversariante. Neste memorável dia em que se comemora 60 anos deste jornal é certo, também, que teria dificuldade de traduzir a satisfação em fazer parte dos que aqui escrevem, caso não recorresse à imagem desse glorioso mendigo-leitor para evocar essa vibrante pulsão que transforma (ainda bem!)  todos nós - leitores e escritores de jornais e livros -  em mendigos das palavras que neles porfiam, tornando mais dadivosa e especial a rotina de nossas vidas.


José Ewerton Neto é autor de O ABC bem humorado de São Luis