artigo publicado na seção Hoje é dia de...
Caderno Alternativo, jornal o Estado do Maranhão, hoje, sábado
Tenho a impressão de que a primeira manifestação de um ser humano
digna desse nome se dá através do seu berro ao chegar, após a palmada do
médico. Seria de revolta ou de protesto? As duas coisas, vá lá, afinal de
contas, na barriga da mãe tudo era melhor, mais quentinho e mais calmo. Há de
se convir que a visão parcial e fantasmagórica daquele sujeito lhe agredindo (o
médico), todo de branco, com aquelas luvas e aquele lenço cobrindo a boca não é
um prenúncio muito alvissareiro do que virá pela frente, ou seja, a vida. Donde
se conclui que qualquer manifestação
contra aquilo que nos aporrinha não
passa de uma rotina da existência, tão natural como respirar .
A merda é
que essa mesma vida vai, desde cedo, mostrando que protestar quando se
está aporrinhado é bom, mas nem sempre resolve. Aos poucos, os berros já não
trazem em contrapartida o carinho da mãe, e os batimentos de pernas contra o
chão, em protesto contra a tabuada, agora provocam palmadas dolorosas. É quando
o petiz é possuído, pela primeira vez, de algo que um dia lhe dirão que é consciência:
“Nem adianta mais mostrar que eu tô aporrinhado,
porque eles sempre parecem estar mais
ainda do que eu. Precisarei ter mais
cuidado com a próxima.” E assim, aprende aquilo que deveria ser a primeira lei das manifestações,
ou dos protestos, como queiram:
“Quando
quiser se manifestar, lembre-se de não aporrinhar seu vizinho. Ele poderá estar
ainda mais aporrinhado do que você”.
Donde deve
ser por isso que um dia surgiram leis, não é verdade? Para regular os
cruzamentos das tantas aporrinhações de todo mundo partindo do que deveria ser
o postulado básico de qualquer manifestação: “Todo ser humano tem tudo para
estar quase sempre aporrinhado com algo, afinal de contas, a vida não passa de
uma belíssima porra. Assim foi no seu surgimento, assim será no fim”. Portanto,
a velha e boa regra da justiça que diz que seu direito termina quando começa o
do outro, nada mais é que, a aporrinhação de cada um legitimada pelo direito. Simples,
não?
2. Mas não
parece ser isso o que ocorre no Brasil, quando se convencionou agir, nas
manifestações, com a suposição de que se alguém der o berro primeiro, sua aporrinhação passa a
valer mais do que a do outro. E haja manifestação: de professor, de aluno, de
doutor, de doente, de sem-terra, de com terra, de branco, de preto, de índio e
de sarará. Semana passada presos fizeram uma manifestação de protesto em
Pedrinhas porque queriam tomar banho de sol em conjunto. Só faltou exigirem uma
praia e Bruna Marquezine, de biquíni, para enfeitar o sol. Quase no mesmo dia, policiais
em algum lugar do país ameaçaram, por sua vez, iniciar protestos por melhores
salários. Como as manifestações tornam polícia e bandido menos indistinguíveis
do que já parece, vai chegar o dia em que marginais e policiais se revezarão em
turnos, para fazer protestos.
Quanto às
causas das reivindicações, as razões se multiplicaram tanto que, ao fim, não
existe mais uma razão definida (e será que precisa?). Qualquer coisa serve como
motivação, desde um buraco de rua até um buraco no fundilho da calça. Um amigo
meu, que mora no subúrbio, não conseguiu um dia chegar em casa porque um
vizinho, que é líder comunitário, conclamou a rapaziada e resolveu fazer uma manifestação,
cuja causa jamais foi esclarecida. Perguntado por um repórter mais tarde, ele respondeu:
“Protesto contra o atual estado de coisas”. E pronto, estava justificado porque,
segundo meu amigo, levava tanto chifre da mulher que o estado das ‘coisas’ dela
passou a ser, de fato, lamentável.
3. Outro
sintoma muito peculiar da manifestação brasileira é seu endereçamento. Explico: deveria ser normal
que um trabalhador aporrinhado por seu chefe tentasse em represália, durante
sua manifestação, pelo menos aporrinhá-lo. Assim agem os operários metalúrgicos
em greve, nas fábricas do mundo todo, diminuindo o lucro dos patrões, mas
abstendo-se de obstruir ruas e viadutos. Nas manifestações brasileiras é
diferente: aporrinha-se, principalmente, quem nada tem a ver com isso. Se a
manifestação é contra os corruptos, por exemplo, nada de procura-los, em suas
tocas, para cobrá-los devidamente. Ao contrário estes continuam inatingíveis,
assistindo na cobertura de suas mansões,
entre uma dose de uísque e outra, as manifestações na tevê como se estivessem
vendo uma novela engraçadíssima. Enquanto
isso, os aporrinhados tratam de aporrinhar idosos, crianças, doentes e mulheres
grávidas.
É a lei da Bala Perdida das Manifestações: “No
Brasil, até as balas perdidas, quando se manifestam, tem o endereçamento
errado. Preferem se alojar nos pobres ao invés de aporrinharem os corruptos.”