artigo publicado na seção Hoje é dia de...Caderno Alternativo, jornal
o Estado do Maranhão, ontem, sábado
O fato é que Ana Jansen , que não era lá essas coisas de boniteza, se perpetuou bem mais do que se tivesse escrito um romance, por exemplo. Isso, embora já não desse dinheiro, na época, dava muito prestígio - pelo menos o suficiente para fazer companhia, no futuro, à estátua de algum pilantra transformado pela História em herói, no corredor soturno de algum museu.
2. Admitindo que ela tenha sido mortal um dia, tudo começou quando ela nasceu em São Luiz , em 1787. Nessa sociedade de então, provinciana e carente, ela começou a treinar para virar lenda quando enviuvou duas vezes. Nessa época, é bom lembrar, não havia divórcio fácil, nem desquite ou amizade colorida, as mulheres se casavam para sempre e a única forma da mulher conseguir casar duas vezes era matando o marido, o que, aparentemente, não aconteceu. Melhor acreditar que os maridos, sabendo que ela estava predestinada a virar lenda, facilitaram-lhe o trabalho, inclusive deixando muito dinheiro para ela.
Ora, o fato de ter se livrado de dois maridos da forma mais segura que existe, que é o desaparecimento destes sem assassinato, faz desconfiar de que muita coisa da qual se falava a seu respeito como, por exemplo, a de que era cruel com seus escravos, não passava de inveja de mulher fofoqueira, desejosa de ter tido a mesma sorte. Inclusive, a história que se conta por aí, de que ela caminhava sobre uma trilha de escravos para não sujar os sapatos franceses quando seguia para seu sítio – que crueldade tem isso? Muito prefeito de interior faz igual ou pior hoje em dia, comprando carros importados com o dinheiro público, e pisoteando, da mesma forma, carentes e futuros cadáveres, e nem por isso deixam de ser admirados e reeleitos.
O certo é que Ana Jansen incomodava muita gente: era pobre e ficou rica, era feia e teve homem como quis e, além disso, entrou na política. Criou desafetos às pencas até que morreu para bem de todos e felicidade geral da nação ludovicense, mais ou menos em paz, em 1869.
3. Se esse é um resumo das peripécias de Ana Jansen quando viva imagine o que ela não fez depois de morta!
Toda quinta-feira ela pegava uma carruagem , saía do cemitério e ia rever suas diversas casas residenciais. (Tem-se de admitir que a vida no cemitério é meio enfadonha para quem trepava quando e onde queria. O estoque de pretendentes era desanimador, e ainda por cima, não havia viagra). Era justo que tivesse saudades e quisesse escapar daquela monotonia.
Intrépida como sempre, lá ia ela com um batalhão de decapitados dirigindo a carruagem e fazendo um barulho dos infernos. Decapitados? Claro, embora o povo com isso se espantasse, era natural que - depois de lidar, em vida, com certo tipo de gente - ela passasse a confiar, agora, em seres humanos sem cabeça, inclusive o cavalo que puxava a carruagem. O que prova que, ao contrário do que se dizia, era a favor da igualdade social e não via diferença, por exemplo, entre cavalos e seres humanos. Quanto ao barulho, isso só causava estranheza porque ainda não havia trios elétricos e carros de som, cujo barulho, como se sabe, é muito mais ensurdecedor e infernal.
4. E, foi assim que, de passeio em passeio, eternizou-se a lenda de Ana Jansen e sua carruagem que, no entanto, foi gradativamente caindo de moda e deixando a sensação de déjà vu, substituída que foi pelos desfiles carnavalescos das escolas de samba, repletos de decapitados vivos e cavalos com cabeça, entre demônios sarados e diabas completamente nuas.
Hoje, quando ela sai para desfilar em com sua carruagem pelas ruas do centro de São Luis, ninguém se dá ao trabalho de espiá-la (preferem o forró do Arlindo, o reggae da Toca da Praia ou a Bandida). Descansando em sua sepultura, nos intervalos dos desfiles de sexta, ela pensa: “A indiferença desse pessoal não me atinge! Nenhum deles vai virar lenda!”
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