segunda-feira, 26 de agosto de 2024

A BELEZA MORRE

 



A BELEZA MORRE

José Ewerton Neto

 

Guardo a impressão de que, a par da exuberância e fartura da beleza humana postas à disposição do público atual para deleite e consumo, somente duas personas da metade do século passado para cá exerceram esse fascínio a ponto de terem se transformado em sinônimos de beleza: No Brasil, Marta Rocha para a beleza feminina e, para o mundo, Alain Delon, como protótipo da beleza masculina.

O curioso é que mesmo numa época machista e preconceituosa quando esse apogeu ocorreu (anos 60 a 70) os homens não se sentiam constrangidos em revelar essa admiração com receio de   provocarem suspeição maldosa. Era comum se elogiar um sujeito bem aparentado chamando-o de Alain Delon, o que enchia de orgulho o objeto referente. Algo semelhante acontecia com o público feminino tratando-se de alusões à Marta Rocha.

Profissionalmente, é natural que Alain Delon haja perseguido sobrepor o seu talento artístico ao seu dom natural de propalada beleza física. Isso aconteceu, por exemplo, com Sofia Loren e Marylin Monroe (expoentes, na mesma época, da beleza física feminina).  Enquanto a norte-americana não o conseguiu da forma que ansiava, a esplendorosa atriz italiana impôs seu talento teatral desde cedo aferindo um Oscar por sua atuação em Duas mulheres, baseado no pungente romance de Alberto Morávia A Ciociara .  

Não lembro se Alain Delon ganhou algum Oscar de melhor ator ou coadjuvante. Assisti a vários filmes dele, especialmente os policiais, mas destaco, entre estes, uma fita que se tornou marcante em minha memória juvenil intitulada A primeira Noite de Tranquilidade. É um filme pouco conhecido, mas, neste, Alain Delon se desvencilha da decantada beleza (viciante e pegajosa em qualquer grande ator), para interpretar um professor amargurado, poético, misterioso e infeliz em sua relação conjugal, caminhando para a tragédia final que é sua primeira noite de tranquilidade: a morte.

Após sua ida soube-se que o ator que encarnou um dia o belo universal, talvez seu principal papel ao longo da vida, atormentado pela decadência física manifestou desejar ardentemente a morte através da eutanásia, o que acabou não acontecendo.

“A beleza é apenas a promessa da felicidade”, dizia Montaigne. Alain Delon há de ter sido feliz com ela, ou apesar dela, com suas mulheres lindas (Romy Shneider foi uma delas), sua misoginia “sic”   e sua vaidade, que o fazia referir-se ao astro Alain Delon na terceira pessoa. Mas a beleza também morre e o grande ator, beleza e glória eclipsadas, teve alcançada como desejada, ao fim, a sua primeira noite de tranquilidade. Tal o personagem do filme, que interpretou magnificamente.

 

artigo publicado no site https://www.immirante.com


sexta-feira, 9 de agosto de 2024

MINHA VIDA DE CAMISA LISTRADA



MINHA VIDA DE  CAMISA LISTRADA

José Ewerton Neto

 

Listas e listras. Listras são sedutoras. Nas vestes, nos enfeites e nos animais  ( zebras). Quanto às listas,  sempre fui vidrado por elas. Tenho desde o Livro das listas a até Listas  Extraordinárias, presente de minha amiga confreira,  poeta Laura Amélia Damous.

Esses dias, relendo revistas antigas deparei com uma edição da  revista Bravo ( certamente está na lista das melhores revistas já publicadas neste país) com sua lista  das cem canções essenciais da MPB.

Uma rápida olhada na seleção me fez constatar que lá estavam desde as clássicas inevitáveis até as menos votadas, da nossa cota pessoal. Do primeiro grupo Construção, Garota de Ipanema, Carinhoso, Detalhes, de diferentes compositores de peso. Do segundo grupo aquelas das quais nos apropriamos sentimentalmente na base do “somos eternamente responsáveis por aquilo que cativamos”, não é mesmo, Exupéry? No meu caso, lá estavam Baby, de Caetano, Ouça, de Maysa, Feitiço da Vila, de Noel, Marina, de Caymmi. Dentro desse espírito, comecei a ficar incomodado na medida em que percorria os títulos e ela não aparecia. Cadê a Camisa Listrada?

Escutei o samba Camisa Listrada pela primeira vez, quando, em criança iniciei o meu aprendizado de violão sob a batuta de meu pai, ele, um exímio instrumentista que tocava também clarinete e saxofone. Não sei o que me fascinou mais quando ouvi a canção, se a melodia repetitiva que, como no Bolero de Ravel vai num crescendo enquanto dramaticamente chega ao êxtase, ou se a letra que, com frases bizarras atordoa nossos ouvidos com precisão angelical e infantil. O início do samba “Vestiu uma camisa listrada e saiu por aí”, é uma declaração de independência à brasileira, muito mais inspirada do que “Independência ou Morte”, por exemplo. Quando logo depois o samba descamba em um   “Mamãe eu quero mamar, mamãe eu quero mamar...”(expressão que mesmo quando soube que se tratava de uma gíria de época, jamais perdeu sua conotação pueril ) já o mistério e o êxtase, essenciais em toda obra de arte,  se completam.

Ora, listas! Se pretendem citar  os melhores hão de ser sempre incompletas e imperfeitas. No caso desta, quando busca as essenciais, isso me parece um artifício dos autores para se proteger dos inevitáveis esquecimentos que, no caso do genial compositor Assis Valente ( que suicidou-se na década de 50) foi apenas parcial pois incluiu sua canção E o mundo não se acabou.

Por algum motivo o samba foi considerado essencial e não Camisa Listrada ou Boas Festas, a mais plangente canção de Natal que já escutei, também de sua lavra. Vai ver que essas músicas são belas, mas não essenciais, assim como também, muitas outras , preferidas por gente de gosto, certamente,  mais refinado que o meu. Enfim, coisas de listas.

Mas a Camisa Listrada deveria estar lá.