“ Um dia uma
folha me bateu nos cílios. Achei Deus de uma grande delicadeza. ” Clarice Lispector.
MOÇA COM BRINCO DE PÉROLA é o retrato
de uma camponesa pintada por Vermeer e se considera um dos seus mais célebres
quadros. A pintura nos comove por vários motivos, mas nenhum deles avança em
direção ao reino das impressões indescritíveis (que todos temos) em velocidade
maior do que a delicadeza que emana de todo o quadro.
A mulher não tem um rosto de beleza
extraordinária, talvez nem possa ser chamada de bela. O rosto, pequeno, carece
de intensidade para chamar a atenção de um olhar desatento. Seus cabelos,
cobertos por uma touca, parecem cumprir a obrigação de humildade, coerente com
seu destino de moça pobre. No entanto, cabeça virada para trás em direção
àquele que a contempla, ela fita demoradamente e continua fitando sem parar
como se quisesse contar uma história, a sua história, a história de sua – agora
sim extraordinária – delicadeza.
Como contar essa história partindo
apenas do seu silêncio e de seu olhar que fita? Como fazer a sua delicadeza
mover-se?
A escritora Tracy Chevalier se propôs
à primeira parte dessa trajetória quando romanceou Moça com brinco de pérola. São delas as palavras “Quando contemplei
o retrato, tentei imaginar o que Vermeer fez a ela para ficar assim, alegre e
triste ao mesmo tempo. Um belo dia tive a compulsão de escrever a sua história.
Fiz o romance em três dias. O diretor Peter Weber se propôs à segunda.
Os atores principais escalados para o
filme foram Scarlet Johansen com Griet (a moça do brinco) e Colin Firth como
Vermeer. Não li o livro ainda. No filme a história é de uma serviçal escolhida pelo pintor para servir-lhe de
modelo. A carga de empatia erótico-artística que se estabelece entre ambos
provoca a ebulição de sentimentos de ciúme e inveja na esposa e filhos.
Quem nunca leu o livro ou tinha
conhecimento do quadro de Vermeer pode ter a sensação de que a história é
anterior ao quadro ou posterior, ou independente dele, até mesmo de que é uma
ficção, como foi a intenção da escritora. No entanto, para quem conhecia o
quadro, a partir da arquitetura montada pelo diretor vê-se que não há
independência entre eles. Perdura no filme o mesmo tom de cores esmaecidas, os
diálogos silenciosos, onde as expressões dizem mais do que as falas, o
sufocante dos sentimentos ocultos e contidos e, predominante a todo instante, a
delicadeza em ação através da formidável atuação de Scarlet Johansen como uma
espécie de obra de arte ambulante, que sai do quadro e se movimenta ao longo de
duas horas de fita.
Quando se diz que não há ficção, isso
seria apenas uma força de expressão, não tivesse o diretor alcançado
o objetivo a que se propôs acima, de traduzir para o cinema uma obra de arte
anteriormente já traduzida – para o livro. De fato, muitos experts da arte
contemporânea hoje falam como se a história romanceada pela escritora tivesse
existido realmente. E por que não teria? Que é a sina humana mais que a busca
incessante de sufocar a inexorabilidade da morte com a ilusão da eternidade até
que isso se torna realidade?
Traduzir o sentimento não dito eis o
maior mérito do contador de histórias. Em entrevista o escritor moçambicano Mia
Couto disse que o ser humano que não sabe narrar uma história é pobre de alguma
maneira. No final do filme de Peter Weber a pintura de Vermeer substitui a
atriz em cena e toma conta da tela substituindo a ação. O espectador,
extasiado, não fica sem entender. A moça do brinco de pérola finalmente viveu a
sua história. Agora já pode retornar ao quadro.
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