segunda-feira, 23 de junho de 2025

MOÇA COM BRINCO DE PÉROLA


“ Um dia uma folha me bateu nos cílios. Achei Deus de uma grande delicadeza. ”  Clarice Lispector.

 

MOÇA COM BRINCO DE PÉROLA é o retrato de uma camponesa pintada por Vermeer e se considera um dos seus mais célebres quadros. A pintura nos comove por vários motivos, mas nenhum deles   avança   em direção ao reino das impressões indescritíveis (que todos temos) em velocidade maior do que a delicadeza que emana de todo o quadro.

A mulher não tem um rosto de beleza extraordinária, talvez nem possa ser chamada de bela. O rosto, pequeno, carece de intensidade para chamar a atenção de um olhar desatento. Seus cabelos, cobertos por uma touca, parecem cumprir a obrigação de humildade, coerente com seu destino de moça pobre. No entanto, cabeça virada para trás em direção àquele que a contempla, ela fita demoradamente e continua fitando sem parar como se quisesse contar uma história, a sua história, a história de sua – agora sim extraordinária – delicadeza.

Como contar essa história partindo apenas do seu silêncio e de seu olhar que fita? Como fazer a sua delicadeza mover-se?

A escritora Tracy Chevalier se propôs à primeira parte dessa trajetória quando romanceou Moça com brinco de pérola. São delas as palavras “Quando contemplei o retrato, tentei imaginar o que Vermeer fez a ela para ficar assim, alegre e triste ao mesmo tempo. Um belo dia tive a compulsão de escrever a sua história. Fiz o romance em três dias. O diretor Peter Weber se propôs à segunda.

Os atores principais escalados para o filme foram Scarlet Johansen com Griet (a moça do brinco) e Colin Firth como Vermeer. Não li o livro ainda. No filme a história é de uma serviçal   escolhida pelo pintor para servir-lhe de modelo. A carga de empatia erótico-artística que se estabelece entre ambos provoca a ebulição de sentimentos de ciúme e inveja na esposa e filhos.

Quem nunca leu o livro ou tinha conhecimento do quadro de Vermeer pode ter a sensação de que a história é anterior ao quadro ou posterior, ou independente dele, até mesmo de que é uma ficção, como foi a intenção da escritora. No entanto, para quem conhecia o quadro, a partir da arquitetura montada pelo diretor vê-se que não há independência entre eles. Perdura no filme o mesmo tom de cores esmaecidas, os diálogos silenciosos, onde as expressões dizem mais do que as falas, o sufocante dos sentimentos ocultos e contidos e, predominante a todo instante, a delicadeza em ação através da formidável atuação de Scarlet Johansen como uma espécie de obra de arte ambulante, que sai do quadro e se movimenta ao longo de duas horas de fita.

Quando se diz que não há ficção, isso seria apenas uma força    de expressão, não tivesse o diretor alcançado o objetivo a que se propôs acima, de traduzir para o cinema uma obra de arte anteriormente já traduzida – para o livro. De fato, muitos experts da arte contemporânea hoje falam como se a história romanceada pela escritora tivesse existido realmente. E por que não teria? Que é a sina humana mais que a busca incessante de sufocar a inexorabilidade da morte com a ilusão da eternidade até que isso se torna realidade?

Traduzir o sentimento não dito eis o maior mérito do contador de histórias. Em entrevista o escritor moçambicano Mia Couto disse que o ser humano que não sabe narrar uma história é pobre de alguma maneira. No final do filme de Peter Weber a pintura de Vermeer substitui a atriz em cena e toma conta da tela substituindo a ação. O espectador, extasiado, não fica sem entender. A moça do brinco de pérola finalmente viveu a sua história. Agora já pode retornar ao quadro. 


 

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