domingo, 14 de fevereiro de 2010

O ULTIMO CARNAVALESCO

Texto publicado na seção Hoje é dia de...
O estado do Maranhão, sábado

O ÚLTIMO CARNAVALESCO

Jose Ewerton Neto, membro da AML

ewerton.neto@hotmail.com





Chico Jardineira já decidiu: não vai brincar os quatro dias do carnaval deste ano. Para onde vai ninguém faz a mínima idéia. Embora tudo isso pareça muito esquisito, a verdade é que alguma coisa já vinha mudando no comportamento de Chico Jardineira de algum tempo para cá.
Há três anos que ele foge das grandes aglomerações carnavalescas. Nada de Madre Deus, de Litorânea, de bailes de Gala, nada. No carnaval do ano passado Chico Jardineira podia ser visto pelas ruas do bairro, sempre com uma fantasia diferente, mascarado, pulando e brincando. Sozinho. Onde houvesse uma turma de bêbados, no botequim ou no mercado, crianças vestidas de fofão, turmas de blocos de sujos, de repente, lá aparecia Chico Jardineira: festivo, alegre, dando sustos nas crianças e nos adultos, bêbado – que ninguém é de ferro –, mas sem aporrinhar ninguém.
E pensar que Chico Jardineira foi o maior folião que já existiu em São Luis. Chico era daqueles de sair de casa na quinta-feira de carnaval e voltar apenas depois da micareta de Ribamar. (Eu disse micareta? Taí uma coisa que Chico nunca aturou ) Um vez perguntou, furioso, como se tivesse levado um tapa: “Micareta? Que diabos é micareta, o nome daquilo é lava-pratos, que estão fazendo do carnaval?” Pois foi por amor ao carnaval que, ao longo de sua vida, Chico perdeu três esposas e cinco amantes. Lembram daquela música do Assis Valente sobre um cara que “vestiu uma camisa listrada e saiu por aí”? Chico era mais ou menos assim, só que não era a sua camisa que ostentava listras, mas, ao invés, seu próprio rosto, que ficava listrado de tantos lanhos que levava das mulheres, desprezadas por causa da folia.
Era, porém, irreconhecível depois do carnaval Voltar ao normal significa que Jardineira se transformava em Francisco Espósito, seu verdadeiro nome. Trocava tão radicalmente de personalidade que até hoje nunca se soube qual a verdadeira. Após o carnaval jamais era visto em festa de reggae, forró, ou qualquer outro evento musical , há quem diga até que no resto do ano virava budista. Donde se conclui que Chico Jardineira só gostava mesmo de carnaval, só se alegrava no carnaval, a sua felicidade na vida se confundia com o carnaval, tanto é assim que ele sabia cantar, de cor, todas as marchinhas carnavalescas, desde o Pelo Telefone, passando por Máscara Negra até as mais recentes, como o “Gostosa”, do Bulcão.
Pois Chico Jardineira acabou revelando algumas de suas decepções para uma amiga comum. Quando perguntado por que não freqüentava mais o circuito carnavalesco, ele explicou: “Falta alegria” “Como?” surpreendeu-se ela, “Que está dizendo? Tanta gente e falta alegria?” Ele respondeu: “ Só vejo ali gente andando de um lado para o outro, sem verdadeira animação, só conseguem dançar se botarem um trio elétrico na frente deles. Ora, alegria não se compra Se houvesse alegria espontânea não precisava o governo gastar tantos milhões para incentivar o carnaval. Tanto dinheiro deveria ser gasto era com hospitais, com a saúde pública e escolas e não para tentar entusiasmar um carnaval, onde já não há espontaneidade. ”
Agora fui eu que perguntei abismado:
- Ele disse mesmo isso?
- Disse, e disse muito mais.
- O quê?
- Que no Brasil não existe mais carnaval, que carnaval é um estado de espírito, não uma festa e que, portanto, durante seu período não era para serem executadas músicas de outros ritmos como axé, rock, forró ou o que quer que seja. Que nada tem contra o trio elétrico, mas contra as músicas que executam e que quase morre de rir quando ouviu tocarem , certa vez, no carnaval baiano, o Hino Nacional.
- Puxa vida! Quem diria... O Chico Jardineira falando isso!
- É, mas...
- Mas...
- Na verdade, quem me disse isso foi o Espósito, entende? Como você sabe, ele e o Chico Jardineira até eu tenho dúvidas se são a mesma pessoa.
Não quis esclarecer isso com o próprio Chico, mas, sábado passado o encontrei num boteco. Era o único carnavalesco, em pleno sábado magro, contrastando com uma multidão de beberrões discutindo futebol. Houve alguém que, inclusive, abriu o porta-malas do seu carro, ligou o som e elevou-o às alturas, tocando funk. Chico, fantasiado e alheio a tudo isso, parecia completamente deslocado, mas insistia nas suas brincadeiras carnavalescas, em vão. O tempo foi passando, um a um se foram, até que me vi sua derradeira companhia. Tive pena de sua solidão, bêbado diante de um copo de cerveja, depois de vê-lo cantarolar uma marchinha atrás da outra, numa ladainha que não tinha fim. Então disse:
- Chico, porque você não vai para a Madre Deus? Lá deve haver mais animação que aqui.
- Para lá eu não vou. Minha alegria é espontânea, entende? Assim como a minha tristeza de agora. Ambas são puras, sabe?
Ao contemplá-lo, todo pintado de branco, como um palhaço, era como se visse um foto dos antigos carnavais, o que, imediatamente, me fez lembrar de um elepê que tinha uma capa belíssima, com dois foliões mascarados e o curioso nome (para mim que era criança, então) de Lira de Xopotó. Como eu o via agora, tal e qual um pierrô desconsolado diante de um copo, vi também transportada, da fotografia para a realidade, uma visão esquecida dos velhos carnavais. Acho que não entendi muito bem o que ele quis dizer quando falou em pureza, alegria e tristeza, mas de uma coisa pude ter certeza: era o último carnavalesco.

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