artigo publicado na seção Hoje é dia de...
Caderno Alternativo, jornal o Estado do Maranhão, hoje, sábado
DE TELEVIGENTE A GENTE-CELULAR
Primeiro foi a televisão, mas ainda éramos seres humanos a
uns 70 %, talvez. Nosso cérebro já vivia dominado pelo que vinha do tubo de
imagem, mas ainda havia resquícios de outra vida; aquela, que se convencionou
chamar de existência. Claro, porque então
não era possível levar um aparelho de tevê enfiado em nossa cabeça, embora
vontade para isso não faltasse.
Então surgiu
o celular, coisa de trinta anos atrás e a
existência , aquela de que falamos acima e que estávamos acostumados a viver, começou a
minguar. Sim, porque telefonar andando na rua agora era possível. Mas não só
andando, como também comendo, bebendo e mijando.
Foi aí que algum sabido teve a ideia de
botar, simultaneamente, a
fotografia no celular, tornando possível
também tirar foto - ou recebe-la - comendo, bebendo e mijando. A seguir, tão
naturalmente quanto o ato de acordar, chegou a vez de botarem a televisão no
celular, tornando possível, a qualquer um, carrega-la de um lado para o outro,
sem se queixar do peso ou da coluna. E
pronto, eis que tudo o que um homem pode fazer, de bom - ou de ruim - na vida passou a caber num aparelhinho menor
que 10 x 10 cm: falar, ver, tirar foto, fazer fofoca, compartilhar sacanagens, roubar, pagar conta , rir, chorar,
gemer etc. etc. Ora, com tudo isso numa caixinha ambulante, quem precisa ainda de
existência?
Os exemplos
estão aí para comprovar que cada vez mais deixamos de viver para virar celulares.
Nem precisa falar das doenças obsessivas ( e incuráveis ) de quem não pode
despregar de um aparelho desses. Para ilustrar como a coisa anda, basta lembrar
uma fila de consultório médico, por exemplo. Ninguém lê uma revista ou livro, conversa
com o vizinho, ou dirige o olhar à direita ou à esquerda. Todos estão
concentrados em suas maquininhas. Até aí tudo bem, o problema é quando chega
finalmente a sua vez de ser atendido e você
percebe que o médico está deixando de lhe escutar para praticar selfies, mensagens,
joguinhos ou sabe-se lá o quê. Ficam tão
concentrados e indiferentes que, sem alternativa, você arrisca:
- Doutor, acho que meu negócio é pneumonia brava.
- Hum, Hum –
diz o médico iniciando a consulta, mas sem conseguir despegar os olhos do aparelho.
- Mas já
estou tomando Redoxon. Seria suficiente?
- Tava só terminando
uma selfie para meus filhinhos e já ia procurar aqui mesmo no google uma solução para o seu caso, mas já que você
se adiantou...Tá aqui o Redoxon carimbado, não é isso o que você queria? – E volta para o celular.
Existência transportada
para o tal aparelho o que será que ainda falta
um celular fazer pela gente? Até poucos dias atrás pensei que fosse evitar
ou fazer filho, mas não é que este fim
de semana li que acabaram de criar um chip que, colocado pro dentro da pele da
mulher, vai fazer com que ela evite a concepção? Ou seja, estamos diante de um processo
evolutivo muito acelerado, ao inverso: ao invés de adaptarmos um celular às
nossas necessidades, nós é que estamos
nos tornando celulares. Escravos de sua tecnologia mais dia menos dia, como tudo o que acontece na vida, logo estaremos comandados pelo controle remoto
de um celular de alguém mais poderoso que a gente (isso é o que não falta).
E se já é
possível colocar um chip dentro de uma mulher para evitar que tenha filho, é
sensato acreditar que muito em breve haverá chip também para fazer o filho.
Podemos até imaginar a situação: uma atônita mãe diante de sua filha de 12
anos, grávida.
- É verdade,
mãe. Não tenho mais como esconder. Estou grávida!
- Quem foi: o jogador de futebol ou o traficante?
- Nenhum dos
dois. Faz mais de nove meses que não vejo esses.
- Ah, não?
Então foi o marido de sua irmã, aquele traste!
- Também
não.
- Alguém do
bumba-boi, do time de vôlei, do grupo de jovens da Igreja? Terá sido
aquele padre que canta música sertaneja?
- Juro que
não.
- Bem, da
tua colega, Valeska que de algum tempo pra cá você não larga o pé, é que não
pode ser. Por enquanto, ela ainda não faz filho. Ou faz?
- Mãe, foi
um chip.
- Chip? Tem
certeza? E De que celular, Martinha. Não
vá me dizer...
- Desse
mesmo.
- Desgraçado,
você não puxou prá mim mesmo. Tinha de engravidar logo de um chip imprestável, de um celular vagabundo. Fosse ao menos, de um
Samsung Galaxy S5. ..
E assim por
diante.
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