sábado, 13 de março de 2010

O ULTIMO ESCRITOR

Texto publicado em O estado do Maranhão,
seção hoje é dia de..., hoje, sábado

O ÚLTIMO ESCRITOR


José Ewerton Neto, membro da AML

ewerton.neto@hotmail.com



Esta cena não vai demorar a acontecer, daqui a uns vinte anos talvez, possivelmente menos. Talvez não aconteça dessa forma, mas seu contexto já está na imaginação de muita gente. Pode-se dizer que os estratos que dirigem esta nação e a imensa maioria do povo age como se isso já estivesse acontecendo.
- Mãe, o que é aquilo mãe?
O filho, aflito, aperta com intensidade a mão da mãe, e contempla alguém não identificado, um personagem sim, mas em tudo estranho aos seus olhos. Estamos num parque e o tal personagem está sentado num banco, com um ou dois livros do lado, escrevendo num caderno. O pequeno, assustado, parece se incomodar muito com isso.
- Sei não, filho, mas acho que é um escritor. Deve ser o mesmo que me parou outro dia na rua para me vender um livro. Que audácia! Quem vai gastar seu dinheiro com livro?
- Como? Escritor? Que é isso, mãe?O que é aquilo que ele segura? O que faz?
- Pare de fazer tantas perguntas bobas, menino!
Num ato impulsivo de curiosidade, próprio das crianças, o menino faz um gesto em direção do homem.
- Cuidado! Calma, menino! Não chegue perto, jamais chegue perto de um homem desses. Não falei que se trata um escritor?
- Sim mãe, mas o que é escritor? Veja, ele não tem cara de quem faz mal a alguém.
- Como não? Já te falei muitas vezes, não vou mais te repetir: Cauã!, fuja de quem faz coisas estranhas. Esse homem escreve, deve escrever muito Ele lê muito, passa o dia escrevendo. Por quê? Para quê? Isso é muito esquisito, filho, por que ele não procura outra ocupação? Se gosta tanto assim de ler, por que não se tornou um professor ? Por que não estudou para ser médico? E se não tem dinheiro para pagar faculdade porque não vai ser guardador de carro, que dá muito mais dinheiro?
- Ele é um vagabundo, então?
- Se não é, faz tudo para ser. O que pode pretender uma pessoa que passa o dia todo escrevendo? Não tem mulher? Não tem família? Sei que mora neste bairro porque já o vi antes. Mas nunca vi esse homem num supermercado, nunca o vi dando risadas, nunca o vi junto de um carro de som, botando conversa fora e escutando forró, como todo mundo. Certamente julga que seja bom viver desse negócio de livro. Ora, por que uma pessoa compraria um troço desses, se não serve para nada?
- Mãe, o que é mesmo um livro?
- Observe com atenção. Daqui dá para olhar.
O filho faz novamente menção de chegar mais perto para ver.
- Não vou te avisar outra vez, Cauã! Já avisei, não se aproxime dele, é perigoso.
O menino conteve-se e aguardou.
- Livro era esse negócio esquisito que ninguém mais usa. Sabia que houve tempo em que as crianças iam para a escola e carregavam um monte deles? Era feito de papel e ainda bem que hoje isso acabou. Hoje você tem e-book, tem celular, tem I-Pod. Enquanto a professora dá as lições, o aluno pode se distrair fazendo joguinhos e espiando coisas instrutivas como Big-Brother, novela, jogo de futebol. Você acredita que houve tempo que nos obrigavam a ler as histórias que vinham nesses livros e que chamavam de romances?
- Mãe, a senhora também chegou a ler algum?
- Tentei sim, era obrigada a isso, mas jamais consegui. Toda vez que tentava ler um, dormia.
- Era uma espécie de remédio, então, mãe?
- Pior, muito pior. Era uma tortura, filhinho. Os professores os usavam para nos meter medo. Tínhamos que ler histórias desagradáveis desses homens de muito tempo atrás, desses que viraram estátuas. Ora, se a gente podia ver novelas e filmes cheias de imagens, porque a gente tinha de matar a cabeça para entender essas mesmas imagens numa letra atrás da outra? Era coisa de gente perversa mesmo, de quem não gostava de criança. Queriam que a gente deixasse de escutar forró, de ver o Big-Brother, de assistir filmes, de namorar, tudo isso para ver esses livros escritos por psicopatas como esse daí. Você sabia filho? Alguns desses escritores se mataram. Teve um até que...
- Céus, como devia ser muito ruim nesse tempo, mamãe. Não deixar a gente ver Big-Brother, aquelas mulheres gostosas, não é mãezinha?
- Ah, safadinho! Sim, meu filho, era muita maldade. Mas ainda bem que o mundo evoluiu. Um dia você vai dar valor ao que a gente teve de agüentar para que as crianças do mundo de hoje...
De repente, o menino queda, extasiado, em contemplação profunda, o que interrompe a fala da mãe num quase grito
- Mãe, e agora, o que ele está fazendo?
- Filho, ele está pensando. Ele deve ter parado para pensar, é isso: parou para pensar, para refletir sobre alguma coisa.
- Para que mesmo, mãe? Refletir? Como se faz isso?
- Eu não te disse que ele é doido? Se existe tanto som para escutar, tanta gente para conversar, tanta coisa para fazer, tanta novela para assistir por que um ser humano pode pensar em pensar? Quem pode gostar de pensamento e silêncio?
- Mãe, não seria melhor chamar logo a polícia?
- Deixa para lá filho. Estamos no Brasil, eles demorariam para chegar. E depois, não precisa temer, esse é o último!


2 comentários:

  1. Sem dúvida alguma, uma de suas melhores crônicas. Você conseguiu unir a sobriedade do crítica com a acidez da revolta, para dar ao público leitor uma ideia bem realista do que poderá acontecer em breve, quando um escritor será visto como um anormal e o ser pensante será visto como uma ameaça iminente. Parabéns, Ewerton!!!

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  2. Obrigado, caro mestre e escritor. Sobre o mesmo assunto li na revista Lingua Portuguesa, ultima edição e página uma cronica sua sobre o tema: mestres que querem ensinar a gostar de ler x pasmaceira geral cotidiana, que todos os que ainda gostam de ler devem comprar ( a revista como todos sabem é ótima e a cronica ainda melhor)

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