sábado, 7 de janeiro de 2012

REPÚBLICA DOS BONDES - E DOS BECOS

artigo publicado hoje no jornal O estado do Maranhão,
seção Hoje é dia de...



 1. Mude seu passado e seja mais feliz, diz a reportagem de capa da revista Super Interessante deste mês. Dito assim parece fácil, não é? Já que não passamos de memórias ambulantes (o presente não dura mais que três   segundos que é o tempo que se leva para que todas as informações saiam da consciência e sejam arquivadas na memória do cérebro), bastaria “limpar” o cérebro das memórias incômodas para que passássemos a ser felizes. Ou seja, como a atriz sueca já havia dito:  “Felicidade é saúde e péssima memória”.
                        A grande dificuldade começa, no entanto, em não se saber exatamente o que excluir da memória. Sim, porque existem tristezas e incômodos  que nos engrandecem e sem as quais a nossa vida perderia o sentido. Complexo, não é? Basta lembrar que quando dizemos para todo mundo ouvir, com transbordante prazer, diante de algumas fotos do passado, “como eu era feliz esse tempo!”, isso não significa que estávamos, de fato, tão felizes essa época. Muitas das vezes o sorriso da foto, na verdade, escondia um recôndito de desgosto ou melancolia.
                         Neste 400º aniversário de São Luis de algo tenho certeza, relativamente às tantas coisas que vale a pena evocar da metade de século em que passamos juntos: a primeira são seus bondes e outra, seus becos. Mais precisamente, duas repúblicas: a dos becos e a dos bondes. Sim, porque como cantou Marina – na bela balada de rock nacional  “Fullgas” – tratando do que é possível fazer a partir de um sentimento: “E a gente faz um país”. Ora, se a partir de  um sentimento fazem-se países, melhor  ainda se podem fazer repúblicas.  

                        2. Dias atrás recebi pela Internet uma preciosa coletânea de fotos dos bondes que trilharam as ruas de São  Luis. Em cada foto, excepcionalmente nítida, pude rever-me em cada um deles. Lá estava eu junto àquelas pessoas, passageiros que nunca conheci, tantos já mortos, mas que eu não percebia como estranhos, mas como pessoas que faziam parte de um mundo íntimo, reconhecível para sempre. Cada vez que eu passava de uma foto para outra, contemplando aqueles bondes indo e voltando pela Rua do Sol, Rua Grande, Praça Gonçalves Dias etc. a criança que eu fui se dirigia a um dos estribos do bonde ( e tratava de “driblar” o cobrador como era comum entre os meninos  para garantir a grana do refrigerante). O menino então, a cada foto, tomava um daqueles bondes e partia... Para onde?
                        Agora sei que a criança pegava aquele bonde para chegar até aqui - esse algum lugar na república dos sentimentos, no futuro, através dos trilhos da memória que não sucumbirão jamais à essa estranha névoa do espaço onde o tempo não existe.  
                       

                        3. A segunda dessas lembranças, é a  república dos becos. Não somente os becos das esquinas dessa São Luis que, oprimidos pela modernização da cidade, juntavam-se,  aos bondes para fazer soar  um último grito de agonia, não contra o progresso, mas contra a potencial perda de nossos valores culturais. Era certamente isso, mas, também, principalmente, esses becos da alma de todo sanluizense de então, especialmente da juventude, estupefatos diante do ignoto: seus apelos luzidios, no embalo da juventude perdida, seus anseios diante da perspectiva da fragmentação dos ideais estratificados há tanto tempo.
                        Essa república dos becos, agônica, requeria um tradutor e, por sorte,  o encontrou no jovem poeta  Luis Augusto Cassas, que, num instante de ousadia e talento descreveu toda essa palpitação em versos como estes:
                        “É via preferencial, construída com cuidado para bloquear o pecado ( risco de contaminar o céu). Por isso caros amigos, em todo o percurso da estrada, anjos arcanjos, serafins e querubins montam guarda.”
                        Hoje passados trinta anos , a República dos Becos – e dos bondes – já não carece de um anjo da guarda que a traduza e a proteja do olvido, pois encontrou-o  em Cassas. Para nós outros, leitores ou não, quando, súbito, nos deparamos com a eternidade seja no livro República dos Becos ou nas fotos do melhor do que se passou em nossas vidas,  constatamos que, de fato,  como anunciou a reportagem de capa da revista, isso se chama felicidade.
                                                                                  ewerton.neto@hotmail.com
                       
                        

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