Que
sacada humorística seria criada por Millor Fernandes, após ter sido sua morte
ofuscada, em termos de repercussão na mídia, pela de Chico Anísio, ocorrida
alguns dias antes? Alguma coisa do tipo: “Pô, Chico, você podia ter esperado um
pouco mais, essa tua última piada foi tão engraçada que ninguém riu da minha!”
O que, guardadas as devidas proporções seria bem próprio dele que dizia coisas
do tipo: “A Academia Brasileira de Letras é composta de 39 membros e um morto
rotativo”, ou “Não quero participar desse rodízio de mortos”, quando perguntado
por que jamais se candidatou à Academia Brasileira de Letras.
Millor, cujo nome nasceu de um piada, pois devia se chamar Milton, deve ter
acatado essa imposição do destino como uma premonição de que ele iria se tornar
o melhor humorista brasileiro, fazendo
literatura das boas, numa época em que isso não existia popularmente. “Enfim,
um escritor sem estilo!”, ele dizia , fazendo troça dos escritores fanfarrões
que existem por aí e de si mesmo. Em nome desse humor, intelectualizado e
sutil, porém, sempre próximo do cidadão comum, jamais abdicou de sua função de
humorista para escrever “o grande romance”
como é comum se cobrar de escritores geniais como ele. Pensando bem, quem
escreveu O Livro vermelho dos pensamentos
de Millor, cujo título é uma paródia ao livro dos pensamentos de Mao Tse
Tung, não precisaria mesmo de um grande romance.
A primeira vez em que deparei com
alguma interligação dos talentos humorísticos de Chico Anísio e Millor
Fernandes foi quando, na adolescência, li uma seção na revista Realidade, em
que talentos e celebridades, falavam um do outro. Na época, Chico Buarque,
jovem já consagrado depois do avassalador
sucesso de A Banda referia-se a Millor: “Millor é sério, mas Vão Gogô é
engraçado”. (Vão Gogô era um pseudônimo que Millor usava, na época). Chico
Anísio, por sua vez, falava de Chico Buarque, e introduzia sua música Quem te viu quem te vê como uma das três
melhores de toda a MPB, além de Feitiço
da Vila, de Noel, e outra da qual
não me recordo.
Alem de terem sido humoristas
geniais e da quase coincidência na hora
da morte, Millor e Chico Anísio guardavam muitos pontos em comum, mas algumas
sutis diferenças, uma das quais se pode extrair da própria frase de Chico
Buarque sobre Millor. O humor que se consegue extrair de pessoas com essa personalidade,
séria, jamais poderia ser como o de Anísio, espontâneo, por vezes extravagante,
mas, sim aquele que nos permite sorrir das
fraquezas humanas, nas entrelinhas do que se lê, a reboque de alguns trocadilhos inesperados.
Numa época em que todos os estudantes brasileiros liam Millor e o Pasquim, uma de suas mais comentadas
tiradas ocorreu quando ocorreu o primeiro transplante de coração feito pelo
médico Christian Bernard que causou sensação no mundo inteiro. Millor saiu-se
com esta: “Blaiberg não foi o primeiro. Já havia o Ricardo Coração de Leão.”
O humor de Chico Anysio, igualmente
genial, tendia pela própria natureza da construção teatral a ser obrigatoriamente popularesco e imediato,
embora traduzisse igual sutileza na construção dos personagens. Coincidiram ambos,
porém, no declínio da última década. O humor de Chico Anysio, baseado na
criação de personagens, tornou-se rapidamente arcaico, quando não foi mais
capaz de se traduzir na criação de protótipos das novas gerações, pós-internet.
Millor, por sua vez, apesar de
perfeitamente integrado, desde sempre,
às exigências dessa nova comunicação,
que exigem textos rápidos, velocidade de
pensamento e ironia concentrada ( Millor sempre foi um inovador e antecipou-se
a escritores como Zé Simão cujo texto ainda é mais acelerado que o dele) , já
não tinha a mesma verve, conseqüência, talvez , do envelhecimento. Seu ultimo
estágio na revista Veja foi pouco penetrante na receptividade dos leitores e
seu blog estava longe de ser um dos mais disputados entre os internautas quando
comparados a outros sites de humor que hoje proliferam na rede.
A morte de Chico Anysio “matou” a de
Millor Fernandes? Qual deles ficará para a eternidade? Neste ponto, ouso
acreditar que levará vantagem Millor :seu tipo de humor é mais durável por não
se basear nas características individuais de personagens estratificados numa
época , mas na crítica ao gênero humano como um todo, seus aforismos
atravessarão mais facilmente a memória, montados que estão nesse único veículo capaz,
talvez, de tanger a eternidade que é a
literatura.
Porém, o mais certo é que ambos estejam
se rindo dessa tal eternidade, em alguma mesa de bar, pros lados do infinito. Chico
fazendo o professor Raimundo para os garçons e Millor rabiscando, mais uma vez,
num caderno de anotações: “ Certos escritores se pretendem eternos e o máximo
que conseguem ser é intermináveis.”
ewerton.neto@hotmail.com
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