Artigo publicado na seção Hoje é dia de...
Caderno Alternativo, jornal O estado do Maranhão, hoje, sábado
Dalton Trevisan, um de nossos mais consagrados escritores
atuais, disse que gostaria que seus contos tivessem a precisão de um hai-kai.
Por isso aprimorou-se em fazê-los curtíssimos, mas, sei não, acho que precisão
parecida a de um hai-kai só esteve perto de conseguir quando, referindo-se ao
romance Grande Sertão, Veredas, de
Guimarães Rosa, disse que nunca tinha visto uma história de travesti tão
inverossímil quanto essa. De fato, uma mulher fazendo-se de homem, no meio de
cabras machos do sertão, sem que ninguém desconfiasse....
Mas,
voltando ao hai-kai, foi o saudoso Erasmo Dias quem, na minha juventude,
chamou-me a atenção e explicou pela primeira vez do que se tratava: um poema
curto, originado do Japão no qual se tenta sintetizar com poucas palavras um
máximo de sentimento. É composto de 17 sílabas, formado por três versos de 5, 7
e novamente 5 sílabas, sendo derivado da tanka, por sua vez um poema de 31 sílabas
do qual se descartam as ultimas 14 sílabas. “É muito difícil, mas quando se
consegue é perfeito”, disse. E deu-me um exemplo: “Ganso, ganso selvagem, com
que idade fizeste tua primeira viagem?”,
que é de autoria de Issa, um dos três maiores (os outros são Bashô e Buson)”.
Poema tão ‘preciso’ que resume em dez palavras tudo o que se poderia dizer
sobre a contemplação da natureza
contraposta à fugacidade de nossa existência.
Para Octavio
Paz “o hai-kai assume um compromisso ainda maior e, fundamentalmente
estimulante, de certas reações implícitas em palavras que despertem o sentido
de uma chave”, o que soa bastante coerente com o objetivo implícito, citado
acima, de precisão, eis que uma chave não pode ser jamais imprecisa, ou inexata.
Contudo, essa precisão, no caso, não deriva da ação, mas surpreendentemente, da
reflexão e da contemplação, no que tangencia a filosofia, já que o hai-kai
precisa ser compreendido em conexão profunda com o budismo-zen. Blyth, um dos
mais agudos tradutores do hai-kai , afirma que “se dizemos que o hai-kai é uma
forma de zen-budismo, não quer dizer que afirmemos que o hai-kai pertença ao
zen, mas sim que o zen pertença ao hai-kai.
Por isso o hai-kai e o zen-budismo
acabam sendo sinônimos, compreendendo-se que este é, em última instância, a norma suprema da vida”.
‘O verdor do
verão foi tudo o que restou dos sonhos dos guerreiros mortos’, era outro
hai-kai, de Bashô, também muito apreciado por Erasmo que o recitava, mais de
uma vez, comovido. Mais tarde o descobri, também, numa tradução de Olga Savary: ‘Relvas de
verão, sob as quais os guerreiros sonham’,
uma adaptação provavelmente mais
aproximada do original em japonês, que Erasmo apenas tornava mais didática,
digamos assim. Anos mais tarde, estando em Fortaleza, e recebendo do amigo
Jorge Tufic, poeta amazonense radicado no Ceará, seu livro de hai-kais do qual
guardei esta preciosidade “Pétalas de mim cultivo num jarro velho, que já foi jardim“ tivemos oportunidade de comentar
em como o ato de pensar e refletir foi relegado na vida atual em favor do
abrir-se de boca, cada vez mais alto e sem a menor compostura possível, nas
redes sociais, na televisão e no convívio social. Enfim, ao inverso dos hai-kais.
Ser ao mesmo
tempo filosófico e contemplativo e, além disso, alcançar precisão e singeleza, eis aí tarefa
que, na execução de um poema, seguramente não é pra qualquer um, mesmo os grandes poetas, que, apenas
esporadicamente se atrevem a produzi-los. E, no entanto, a grande dádiva dessa
forma de escrever poesia parece ser ensinar-nos que o melhor do talento está na simplicidade. Sem
carecer de artificialismos linguísticos ou estudos elaborados, tendo discernimento,
espírito e oportunidade pode ser reconhecida
até na carroceria de um caminhão. Como o que li semana passada:
“Pouco faz
uma presidente
que faz
pouco de sua gente”.
Não tem quase
a precisão de um hai-kai?
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