sábado, 18 de julho de 2015

A PRECISÃO DE UM HAIKAI




Artigo publicado na seção Hoje é dia de...
Caderno Alternativo, jornal O estado do Maranhão, hoje, sábado


Dalton Trevisan, um de nossos mais consagrados escritores atuais, disse que gostaria que seus contos tivessem a precisão de um hai-kai. Por isso aprimorou-se em fazê-los curtíssimos, mas, sei não, acho que precisão parecida a de um hai-kai só esteve perto de conseguir quando, referindo-se ao romance Grande Sertão, Veredas, de Guimarães Rosa, disse que nunca tinha visto uma história de travesti tão inverossímil quanto essa. De fato, uma mulher fazendo-se de homem, no meio de cabras machos do sertão, sem que ninguém desconfiasse....

            Mas, voltando ao hai-kai, foi o saudoso Erasmo Dias quem, na minha juventude, chamou-me a atenção e explicou pela primeira vez do que se tratava: um poema curto, originado do Japão no qual se tenta sintetizar com poucas palavras um máximo de sentimento. É composto de 17 sílabas, formado por três versos de 5, 7 e novamente 5 sílabas, sendo derivado da tanka, por sua vez um poema de 31 sílabas do qual se descartam as ultimas 14 sílabas. “É muito difícil, mas quando se consegue é perfeito”, disse. E deu-me um exemplo: “Ganso, ganso selvagem, com que  idade fizeste tua primeira viagem?”, que é de autoria de Issa, um dos três maiores (os outros são Bashô e Buson)”. Poema tão ‘preciso’ que  resume  em dez palavras tudo o que se poderia dizer sobre a contemplação da natureza  contraposta à fugacidade de nossa existência.

            Para Octavio Paz “o hai-kai assume um compromisso ainda maior e, fundamentalmente estimulante, de certas reações implícitas em palavras que despertem o sentido de uma chave”, o que soa bastante coerente com o objetivo implícito, citado acima, de precisão, eis que uma chave não pode ser jamais imprecisa, ou inexata. Contudo, essa precisão, no caso, não deriva da ação, mas surpreendentemente, da reflexão e da contemplação, no que tangencia a filosofia, já que o hai-kai precisa ser compreendido em conexão profunda com o budismo-zen. Blyth, um dos mais agudos tradutores do hai-kai , afirma que “se dizemos que o hai-kai é uma forma de zen-budismo, não quer dizer que afirmemos que o hai-kai pertença ao zen, mas sim que o zen pertença ao hai-kai.




                                             





 Por isso o hai-kai e o zen-budismo acabam sendo sinônimos, compreendendo-se que este é, em última instância,  a norma suprema da vida”.

            ‘O verdor do verão foi tudo o que restou dos sonhos dos guerreiros mortos’, era outro hai-kai, de Bashô, também muito apreciado por Erasmo que o recitava, mais de uma vez, comovido. Mais tarde o descobri, também,  numa tradução de Olga Savary: ‘Relvas de verão, sob as quais os guerreiros sonham’,  



                                                           
uma adaptação provavelmente mais aproximada do original em japonês, que Erasmo apenas tornava mais didática, digamos assim. Anos mais tarde, estando em Fortaleza, e recebendo do amigo Jorge Tufic, poeta amazonense radicado no Ceará, seu livro de hai-kais do qual guardei esta preciosidade “Pétalas de mim cultivo num  jarro velho, que já  foi jardim“ tivemos oportunidade de comentar em como o ato de pensar e refletir foi relegado na vida atual em favor do abrir-se de boca, cada vez mais alto e sem a menor compostura possível, nas redes sociais, na televisão e no convívio social.  Enfim, ao inverso dos hai-kais.

            Ser ao mesmo tempo filosófico e contemplativo e, além disso,  alcançar precisão e singeleza, eis aí tarefa que, na execução de um poema, seguramente não é pra qualquer um,  mesmo os grandes poetas, que, apenas esporadicamente se atrevem a produzi-los. E, no entanto, a grande dádiva dessa forma de escrever poesia parece ser ensinar-nos  que o melhor do talento está na simplicidade. Sem carecer de artificialismos linguísticos ou estudos elaborados, tendo discernimento, espírito e oportunidade  pode ser reconhecida até na carroceria de um caminhão. Como o que  li semana passada:

            Pouco faz uma  presidente
            que faz pouco  de sua gente”.

            Não tem quase a precisão de um hai-kai?

                                                                       ewerton.neto@hotmail.com

                                               http://www.joseewertonneto.blogspot.com

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