sábado, 4 de julho de 2015

CAPITU ( A PRIMEIRA ENTREVISTA)




texto publicado na seção Hoje é dia de...
Caderno Alternativo, jornal o Estado do Maranhão, hoje, sábado


A primeira entrevista de Capitu está abaixo. Sim, ela mesma: Capitu, a ambígua heroína de Machado de Assis, aquela do eterno “botou chifre no marido  ou não?”.
            A necessidade de reproduzi-la  ( já que foi publicada neste jornal  em 20/09/2008), advêm  de o escritor Mario Prata estar lançando um livro de entrevistas com  personagens do passado. Talvez Capitu esteja no seu livro, como estaria no meu, que se  chamaria Entrevistas com seres improváveis.
            Mario Prata, um de nossos melhores cronistas, claro, não tem culpa se alguém lá nos confins do Maranhão teve uma ideia parecida, deve ter tido mais tempo, talento – e quiçá- disposição e, assim, concluiu o livro que, ainda não li,  mas já gostei. Porém, antes que um dia alguém me acuse de plágio, registro que a primeira entrevista que alguém um dia ousou fazer com Capitu foi  essa. Ei-la:

            - A que devo sua visita, senhor?
            - Sou seu fã, há muito tempo.
            - De mim?
            - Sim, todos os leitores de Dom Casmurro são seus fãs, a senhora é um grande mistério na literatura.
            - E veio de tão longe por causa de um mistério? E, ainda por cima, da literatura?
            - Não é somente pelo mistério. É mais que isso, creia. Seus olhos oblíquos, de ressaca, parecendo uma epilepsia do mar. É uma fascinação tão grande!...Não sei como explicar.




                                                      





            - Vai dizer que se apaixonou por mim, um mero personagem.
            - Sim, como todos.
            - Correspondo à sua imagem?
            - Sim, é assim mesmo que eu  lhe via. Foi desse jeito a imagem que me ficou. Dia, após dia...
            - O senhor parece nervoso.  Gostaria de entender. Não passo de uma pobre personagem, de um grande escritor. O que quer de mim? O que todos querem de mim?
            - Na verdade...
            - Ah, já sei... A pergunta de sempre. Está em seus olhos.
            - Não me leve a mal, por favor. Não gostaria de ofendê-la.
            - Vamos lá, crie coragem. Pergunte se eu fui mesmo adúltera e satisfaça sua curiosidade mórbida. Todos querem me perguntar isso: a humanidade, o sol, o mar, a eternidade. Ninguém quer saber de mim, da mulher que eu personifiquei. Dá a impressão de que só valho por um potencial adultério, e não pela mulher que fui. 

                                               

                                                  


            - Não perguntarei mais. Isso pouco importa. Basta-me estar em sua presença, tê-la visto.
            - Mentira! Não seja hipócrita, faça seu papel. Pergunte, pois você sabe tanto quanto eu que foi para isso que veio.
            - Que assim seja,  dona Capitu. Acho que é hora mesmo de acabar com isso, com todo esse dilema. A senhora traiu Bentinho, ou não?
            - Quer mesmo que eu lhe diga?
            - Por favor!
            - Leia o livro ainda uma vez. Depois  repita, dez, cem, mil vezes. Você encontrará sempre a mesma Capitu. Todos sabem quem eu sou, o que fiz,  o que deixei de fazer, está muito claro. Façam teses literárias, especulem, deliciem-se com a minha sina, provoquem discussões estéreis e ainda serei a mesma Capitu, com o espírito eternamente sem paz por causa disso.  Mas a humanidade é mendiga de mistério e fofoca, não é mesmo? Até com personagens literários.  


                                               





            - Mas...que devo concluir?
            - Vejo que não entendeu e não entenderá nunca. Volte para casa e continue o mistério. Não tenha dó de mim, estarei sempre ponta para servir à imaginação do meu autor, para isso fui concebida por ele. Assim como Judas talvez tenha sido apenas um servo de Deus para trair Cristo, eu apenas sou sua serva para enredar-me na especulação sobre uma traição. Que o mistério permaneça para sempre à custa da pobre Capitu. Isso é sonho! Isso é literatura! Isso é romance!
                                                                                              ewerton.neto@hotmail.com
                                                                       http://www.joseewertonneto.blogspot.com


Nenhum comentário:

Postar um comentário