artigo publicado na seção Hoje é dia de...
Caderno Alternativo, jornal o Estado do Maranhão, hoje, sábado
Lembro que a primeira vez que ouvi falar de Noel Rosa foi
quando escutei Chico Buarque cantar no antigo programa Esta noite se improvisa, um trecho
da música Feitiço da Vila. O
programa que fez muito sucesso, essa época na TV Record, com apresentação de Blota Jr. era um concurso
para cantores nos quais se media o conhecimento musical do artista e a
velocidade de resposta. O apresentador dizia “A palavra é”... e os concorrentes
tinham de apertar um botão cantando um trecho da canção contendo a palavra.
Chico Buarque era um dos que sempre venciam e, entre outros méritos que o
programa tinha um deles era o de aproximar, num show de toda semana, as turmas
da MPB e da Jovem Guarda que viviam às turras, porque havia certo preconceito
da turma da MPB contra o rock.
Meu pai, Juvenil
Amorim Ewerton, apreciava muito o programa e foi ele quem me alertou para o autor
da música , quando, por um instante, imaginei
que fosse uma nova canção de Chico Buarque: “Essa é de Noel Rosa, é Feitiço da
vila”. Logo a seguir, se propôs a ensinar-me a acompanhá-la no violão já que, há
algum tempo, eu iniciara com ele, meu aprendizado.
Sim, porque
ele, nessa época juiz de direito e mais tarde desembargador, sempre teve o
maior empenho em que seus filhos, aprendessem algum instrumento musical,
orientação essa, aliás, que lhe fora transmitida
pelo meu avô, Jose Ribamar Ewerton, o que sempre considerei uma benéfica e
gloriosa imposição genética. Do meu avô guardo, aliás, o solo da “marcha dos
marinheiros”, que foi ensinado por ele à
minha tia Rosa Ewerton, e que ela me repassou, tendo sido ela também, além de
professora, uma fervorosa apreciadora de música, tendo se dedicado , certa feita, ao acordeão.
Mas, jamais
cheguei ou chegarei , nem de longe, ao
exercício talentoso de meu pai nos instrumentos musicais, ele que tocava em
orquestra na juventude e pertenceu a uma banda que animava festas em
Guimarães, Cedral e arredores, tocando além de violão, cavaquinho, saxofone e
clarinete. Aliás, em recente crônica semana passada neste espaço o escritor e confrade Jomar Moraes, evocando seu genitor,
lembrou que meu pai foi um dos seus alunos, já que José Alípio de Moraes Filho,
pai de Jomar, era um músico famoso em São Luís. Aconteceu que a pedido do meu avô, que era amigo dele, José
Alípio de Moraes hospedou meu pai, jovem e recém-transferido do interior para
São Luís, durante alguns dias em sua casa, justamente para inicia-lo em seus
estudo musicais. Devo acrescentar que, além de todo esse ambiente e incentivo
musical que meu pai me proporcionou, devo e agradeço a ele outra faceta igualmente muito valiosa de formação
artística: a reverência e a percepção da obra Noel Rosa, de quem meu pai era
admirador incondicional e , provavelmente, um dos maiores conhecedores de sua
obra em São Luís, embora, muito a seu feitio, a ninguém propagasse isso.
Guardo com
carinho o presente que me deu e do qual ele gostava muito (essencial a meu ver para
todo aquele que aprecie o talento artístico): a biografia de Noel Rosa feita
por João Máximo e Carlos Didier, um definitivo compêndio da vida e da obra do
genial compositor carioca precocemente morto, além de uma caixa, contendo toda
sua produção musical. A estas alturas, ele
compreendera que a admiração que tinha pelo compositor prosseguiria após sua
partida em seus legatários, o que não é compreensível apenas por uma deferência
genética, mas também por uma constatação, óbvia, para todo aquele que tenha
algum gosto musical e compreenda a diferença entre o jorro de um talento
intuitivo, especial e muito acima da
média de um Noel Rosa, se comparado a outros talentos que se desenvolvem às custas apenas do aprimoramento do intelecto e da dedicação.
Por isso,
alguns anos atrás, causou-nos espécie
que na escolha do maior compositor do século, Chico Buarque aparecesse em
primeiro lugar, ocupando um lugar que achamos que teria de ser concedido a Noel
Rosa, cuja obra musical, mais abrangente e
atemporal, superou em vitalidade a todas as outras na MPB, apesar de ter morrido com apenas 27 anos. Chico
Buarque, aliás, nunca negou a superioridade musical daquele que o inspirou e
formou. Embora eu tivesse sido um ardoroso fã de primeira linha da música de
Chico (que me incentivou a conhecer mais da MPB, e a dividir o gosto musical
que, como todo jovem da época passava
necessariamente pela rebeldia do rock ‘a
juventude é a maior de todas as
liberdades’, e ia dos Beatles a Rolling
Stones e daí a Led Zeppelin). Mais tarde
concluí, porém, que embora a obra musical
de Chico Buarque de Holanda seja magistral, a de Noel Rosa é muito mais latejante e eterna,
por ter mais recursos de empatia popular e porque alia o talento, a singeleza e
capacidade de ironia sutil ao alcançar o mais difícil tom preconizado por
Manuel Bandeira: de que o mais difícil, porém, muito mais talentoso na arte,
está na busca da expressão que se distingue justamente pela maneira simples de
dizer as coisas. A obra de Chico, menos vital e mais elaborada, em pouco tempo
tornou-se excessivamente datada em algumas de suas mais importantes canções.
Mas não se trata aqui de fazer uma
comparação musical entre dois grandes artistas da MPB, o que, aliás, não está ao meu alcance, mas sim de lembrar a conexão
obtida a partir da nossa admiração recíproca pelo compositor, hoje que se completaram dois anos do
falecimento de meu pai, na ultima quinta-feira.
Tenho
certeza de que, no céu, terá cumprido uma de suas maiores desejos: assistir a
um show de Noel Rosa, junto a familiares e amigos que já se foram, assim como um
dia assistimos a um concerto de Turíbio Santos, a quem tanto admirava também e
que hoje, para seu incontestável orgulho (que, infelizmente ainda não pode me
transmitir, mas o fará um dia) se tornou
meu confrade na AML.
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