Artigo comemorativo aos 60 anos do jornal O estado do Maranhão e publicado no caderno especial do dia 1 de maio de 2019
Alvorece. Um
mendigo estirado na calçada e encostado ao batente de uma loja permanece indiferente aos transeuntes que
passam. Até que, num gesto brusco, levanta
a cabeça, sacode os ombros e se senta. Em seguida, passa as mãos nos cabelos
desgrenhados, enquanto se liberta dos andrajos que o cobrem. Toma de uma velha mochila
ao seu lado e procura algo em seu interior. Desiste e mete, freneticamente, as
mãos no bolso. Agora sim, parece ter achado o que procura.
Meio desorientado,
como se ainda estivesse sob o efeito do sono, busca com o olhar localizar algo. A câmera que
filma o episódio muda o foco para a paisagem ao redor e mostra, na esquina, uma
banca de revistas, para onde, agora, ele se dirige a passos trôpegos. Entrega
alguma coisa na ponta dos dedos para o dono da banca e retorna com algo. Esse
algo, que põe debaixo do braço e acabou de comprar em troca de algumas moedas é
um jornal.
De novo no
batente da loja, que ainda não abriu, senta-se. A câmera foca o rosto do
mendigo, absorto, por trás do jornal. Seus instantes de leitura são registrados
pela câmera, enquanto o mendigo permanece concentrado, longe de sua vida difícil, enquanto a Terra e
seu satélite giram, giram as pessoas e o mundo todo, inclusive aqueles que passam
apressados diante dele, quase a
pisoteá-lo. Durante esses alguns minutos nada existe, para ele, além do que lê
no jornal.
Essa cena,
registro da primeira preocupação de um mendigo em sua primeira ação do
dia, mais forte que a fome, mais forte
que a pobreza, mais forte que a carência afetiva e social perpetuou-se em minha
mente depois que a vi, na televisão. Não lembro exatamente quando e em que
programa aconteceu, só recordo que se deu na Argentina. Talvez tenha sido uma
cena fortuita, sequestrada do cotidiano e o objetivo nem tenha sido o de
enfatizar a busca da leitura como primeira ação do dia.
Ao ser
convidado para escrever sobre o aniversário de 60 anos do jornal o Estado do Maranhão, lembrei-me desta
cena e a localizei como ponto de partida para a tradução dessa empatia que,
como a do mendigo, se estabeleceu de mim para com os jornais a partir de certo
momento da minha juventude. Já disse a amigos mais íntimos ou familiares que os
melhores momentos de minha vida não foram viagens, idas a restaurantes, baladas
ou carnavais, mas os instantes em que, livre
da azáfama do trabalho como engenheiro metalurgista, então no Rio, depois em
Minas ou Salvador, adquiria o Jornal do Brasil, o Globo ou O estado de São
Paulo, em dia de feriado e, sem preocupação com o tempo, pegava do jornal e
isolado em algum canto de uma lanchonete ou bar , lia as notícias que me
interessavam: de política, esporte, cinema e, em especial os cadernos de
literatura para depois garatujar escritos sonhando com o dia em que poderia ser
lido por alguém ou ler a mim mesmo nas páginas de um jornal.
Sim, porque
somente comparável à alegria de ler é a de se ver publicado, principalmente
quando isso é inusitado, o que me aconteceu pela primeira vez em tempos mais
remotos quando, estimulado pelo saudoso Erasmo Dias, enviei um poema intitulado
A Chamada para as páginas do Jornal Pequeno. Imaginem essa alegria multiplicando-a
pela esperança juvenil, esse sinal de operação/transformação que, mais na vida
que na matemática, tem a capacidade de
acelerar os sonhos.
Soa redundante,
então, enfatizar como sou grato a este periódico que me proporcionou a segunda
parte desta realização há mais de 25 anos, primeiro como colaborador eventual e
depois assíduo. Por isso me considero
também aniversariante. Neste memorável dia em que se comemora 60 anos deste
jornal é certo, também, que teria dificuldade de traduzir a satisfação em fazer
parte dos que aqui escrevem, caso não recorresse à imagem desse glorioso
mendigo-leitor para evocar essa vibrante pulsão que transforma (ainda bem!) todos nós - leitores e escritores de jornais e
livros - em mendigos das palavras que neles
porfiam, tornando mais dadivosa e especial a rotina de nossas vidas.
José Ewerton Neto é autor de O ABC bem humorado de São Luis
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