quinta-feira, 22 de outubro de 2009

ESSA LITERATURA TÃO CHATA

Texto publicado no jornal
O estado do maranhão, especial
para o caderno Alternativo, domingo passado.


ESSA LITERATURA TÃO CHATA!

“Em geral, acreditem, os escritores não recebem a palavra nem mesmo nas cerimônias em que são premiados.” Rodrigo Lacerda, escritor e editor da revista Serrote.


Jose Ewerton Neto, membro da AML, autor de Ei, você conhece Alexander Guaracy?

ewerton.neto@hotmail.com




Chico Buarque disse que escrever é uma chatice.
Chico Buarque, compositor e cantor famoso também é hoje o mais disputado escritor nacional, o mais badalado pela imprensa, pelos críticos, pelos professores de literatura, pelas revistas literárias. Sua presença foi disputadíssima na última Flip (Feira do livro de Parati) causando a evasão de público das outras atrações literárias da feira em paralelo à sua apresentação, Se considerarmos que o outro escritor brasileiro best-seller, Paulo Coelho, é certamente mais um mago que um escritor, não é de estranhar que, para muitos brasileiros, Chico Buarque seja mesmo, atualmente, o maior escritor nacional.
No entanto, escrever, para ele, é uma chatice. E olha que quando quer escrever as páginas de seus romances , exige-se o conforto de viajar para Paris a fim de lá se refugiar por alguns meses, em seu apartamento, com o único propósito de escrever um romance. Antes de escrever as páginas do seu último livro Leite Derramado, a Cia. das Letras, sua editora, já havia encomendado várias edições , e múltiplas resenhas de críticos já se acumulavam nas revistas e nos cadernos literários, enfim, o seu trabalho “tão chato” tem compensação garantida, pelo menos em termos de grana e badalação.
Se escrever, para ele, é uma chatice imagine o que não deveria ser para os outros escritores deste país. Estes escrevem livros sem sequer saber se serão publicados, que dirá se serão vendidos; a maioria não têm apartamentos em sua própria cidade, que dirá em Paris. Podem contar com o quê, a não ser com a dádiva de uma benevolente imaginação, para se inspirarem e continuarem o “ofício da esperança”, que, em última análise, é o ofício de todo escritor?
Se, até mesmo quando, depois de árdua competição, sucede de ganharem um concurso - como acontece aqui em São Luis -, para receber o prêmio são aconselhados pelos próprios mentores do concurso a correrem para a justiça sob pena de jamais o receber? Isso nos leva a refletir: por que será que esses escritores não param de escrever, se seus talentos, mesmo quando reconhecidos, são tão espezinhados, inclusive pelo próprio poder público, que os estimulou? Será que entre o ato de escrever e a odisséia previamente anunciada de suas lutas existe um sentimento mais profundo de realização - e prazer - que a imaginação de Chico Buarque não consegue alcançar pelas facilidades obtidas em sua trajetória?
Millor Fernandes, o humorista, dizia que a maior vontade do intelectual é de ser rico, e a do rico é ser intelectual. Chico Buarque que, em sua época de juventude, egresso de família rica e intelectual, tornou-se um dos melhores compositores de uma geração talentosa e especial, hoje, muito mais rico, goza de uma gloriosa e justa reputação que, no entanto, o supervaloriza em tudo o que faz. A fama que adquiriu como compositor e cantor parece tê-lo blindado das análises literárias mais profundas, a ponto de serem raríssimas as críticas que apontam para a sua falta de imaginação literária, que o faz elaborar romances à reboque de temas já utilizados por escritores consagrados. Parecendo ter dado como encerrada a sua missão como compositor de M.P.B. para decepção de seus inúmeros fãs (entre os quais me incluo), há muito tempo que o marasmo tomou conta de sua produção musical. É compreensível e quase natural, portanto, que de acordo com o seu passado reluzente, seja tocado, também, pela visão da mosca azul, peculiar a todo rico, segundo o humorista: a de querer ser, também, um escritor.
Com um detalhe adicional: para ser coerente com esse passado, a Chico Buarque não basta apenas ser um bom escritor, exige-se que seja “um grande” escritor. Dessa exigência (peculiar à estrutura midiática que fomenta a aura criada em torno dos mitos modernos) tomam parte: editores, fãs, professores, críticos e leitores em geral, a maioria de forma inconsciente , inclusive, talvez, ele próprio. Por isso, deu-se ao direito de tornar-se arrogante, como a seu respeito denunciou a escritora norte-americana Edna ò Brien quando o acusou, durante a Flip, de não passar de um embuste, além de demonstrar pouco conhecimento da literatura. Deu-se ao direito também de, ao se referir com desprezo ao ato de escrever, nos oferecer um mote para chamar a atenção sobre o que se passa com a literatura nacional, tão combalida e desprezada, que é forçada a aceitar como o seu escritor de ponta justamente aquele para quem o ato de escrever não passa de uma chatice.
Ora, se o ato de escrever é uma chatice para seu maior representante não seria esse o testemunho pungente que faltava para avalizar a comprovação de que para a maioria dos brasileiros a literatura não passa mesmo de uma grande chatice? Pois não é isso o que se vê? A literatura é uma chatice para o presidente da República, para governadores, para professores, para estudantes e para o brasileiro comum, que jamais substitui uma mínima parcela de seu prazer de escutar forró a altíssimos decibéis, por um segundo de contemplação das páginas de um livro, por melhor que ele seja - e por mais riqueza que contenha. Ao contrário do que acontece em outros países onde nos terminais de metrô, praças e aeroportos comumente vê-se alguém concentrado na leitura de um livro, como é raro observar-se isso neste país!
Como é chato, ler um livro – dizem as crianças! Como é chato ler um livro dizem os estudantes universitários! Como é chato selecionar um livro de um autor fora do circuito preconcebido das editoras – dizem os professores de literatura, como é chato resenhar o livro de um escritor que não tenha apelo na mídia - dizem os raros críticos literários deste Brasil... Como é chato ter de pagar premio para quem venceu um concurso de literatura, não é mesmo, secretários de cultura, desta Atenas Brasileira? Como é chata, muito chata essa literatura!
Mais chata ainda do que essa perturbação inerente à literatura em si, só mesmo a obrigação de “ter de engoli-la”, não é mesmo? Quando forçado a referir-se ao hábito da leitura, nosso presidente Lula assim se referiu: “Ler é muito chato, mas é como se exercitar numa esteira, no começo é ruim, mas depois a gente se acostuma.” Assim também, para os que estão nos postos chaves desta nação, inclusive na área cultural, haja ter de suportar a sua incômoda presença! ( Porque por mais poderoso que alguém se julgue, tem consciência de que, ao tentar ignora-la, destitui-se daquilo que mais preza à raça humana: a distinção dos outros animais, o que só é possível em plenitude através dela, da literatura, e de sua capacidade, de induzir à reflexão.)
Disse um escritor norte-americano que a única vantagem de ser escritor é a de que ninguém o chama de burro por ganhar tão pouco. Se muitos escritores ás custas de penúria e talento ganharam esse privilégio, por outro lado os bem afortunados sabem perfeitamente que esse dom jamais lhes será accessível como benesse natural do poder. Precisam recorrer, em alguma circunstância, ao que a literatura tenha de simbologia espúria para salvar as aparências e torna-la complemento da própria vaidade. Tão boa é essa literatura que até para isso ela se presta! - quando corrompida. A abordagem da façanha literária passa a ser feita então não pelo que ela tem de mais prazerosa, que é o exercício de sua leitura, mas pelo espocar de flashes contaminados pelas explosões festivas nas comemorações midiáticas: não os milhares de livros extraordinários que estão à espera de serem lidos, mas a vaidade de poder propagar: “Tenho em minha estante um livro de Chico Buarque, adorei o livro de Roberto Justus , sou fã das histórias para crianças de Gabriel, o Pensador”, numa jornada onde a satisfação não é com o conteúdo do livro mas com a ostentação de uma aproximação virtual com qualquer personalidade badalada pela mídia.
Tal distorção que contamina o próprio ambiente literário faz com que não se concebam eventos literários de qualquer espécie (feiras, concursos, comemorações, palestras etc.) sem a obrigatória presença de alguém do ramo musical que sirva de referência e locomotiva para chamamento de público, sob pena de se esvaziarem os assentos e as repercussões nas edições dos jornais. Sem outra alternativa, a isso se submetem os verdadeiros escritores, alguns consagrados, aceitando tornarem-se , meros coadjuvantes das celebridades pseudo-literárias. Foi assim, que anos atrás foi concedido o premio de melhor livro do ano à Budapeste, de Chico Buarque, no mesmo ano em que concorria O Silencio do Delator de Jose Neumanne (de concepção e sutilezas literárias muitas vezes mais ricas) apenas para que fosse satisfeita a regra atual segundo a qual se fazem concursos não para premiar e divulgar os escritores, mas, ao contrário, premiam-se escritores para divulgar os concursos.
Num momento em que uma pesquisa nacional com jovens universitários elege Roberto Justus e sua cosmética performance de pseudo-empreendedor como o modelo de referência a ser almejado em suas vidas e em que milhões de pessoas “twittam” pela internet à cata de fuçar o cotidiano de celebridades como Ivete Sangalo, Angélica, Sandy e etc. para se regalarem com pérolas como estas: “Vou tomar banho que eu to fun”, Ivete Sangalo ou “Não ofereci pq era o ultimo pote na geladeira! Ahahaha”, Sandy, já nem causa surpresa que, esteja sendo anunciado como grande atração da próxima feira de livros de São Luis, não um escritor, mas o cantor baiano Chico César, que aqui autografará um áudio-livro (?)
Isso porque a chatice, essa monumental chatice da literatura, tem de ser evitada a qualquer custo, portanto devem estar certas as autoridades quando, para garantirem a satisfação do público presente, transformam a literatura numa alegoria ambulante para desfilarem cantores que possam trazer retorno ao capital investido, sabidamente tão escasso. Um grande escritor, não tão famoso quanto Chico Buarque, um dia definiu o chato como aquele que te rouba a solidão sem te fazer companhia. Talvez não seja o caso do (bom) compositor musical Chico César, mas, certamente, não é o da literatura que, ao contrário do que pensam muitos mandatários, sempre fez da solidão a melhor companhia do mundo. A respeito dela e de sua eterna - e prazerosa – sedução, já que estamos falando também de MPB, não custa lembrar da lição do velho Lupicínio: “Esses moços, pobres moços, ah se soubessem o que eu sei...”





3 comentários:

  1. Como eu já te disse, Ewerton, esste texto está perfeito. Um abraço!

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  2. Sem a sua permissão, mas com muita admiração, publicamos esse sensato e oportuno texto no nosso blog maranharte@blogspot.com

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  3. Obrigado, percebo que a boa repercussão
    do artigo ( jornalistas, escritores, estudantes, etc) mostra que muitos maranhenses
    estão preocupados com o que estão fazendo com a nossa "Atenas Brasileira"
    e com a literatura, em geral, no nosso país.

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