artigo publicado na seção Hoje é dia de...
Caderno Alternativo, jornal o Estado do Maranhão, hoje,
sábado.
VERAS, O TRANSIMANÍACO
Veras nunca soube – e talvez jamais saiba – que se
transformou num transimaníaco. Que diabo é isso? Vá lá, a síndrome que se apossou de
Veras ainda não foi reconhecida pela ciência médica, mas Veras (isso a gente
tem certeza) é uma vítima notória das obsessões do trânsito. Transimaníaco,
pois, é um neologismo que tenta nomear o
aparente desvario humano diante dessas obsessões.
Tudo começou
quando Veras, que é motorista de táxi,
tornou-se especialista num jogo que ele mesmo deve ter inventado:
adivinhar a causa do próximo e indefectível engarrafamento: “Esse tem cara de que
foi uma moto. ” Ou “claro que é gente da
prefeitura, querendo mostrar que estão trabalhando” ou “ uma carroça”, “atropelamento de pedestre”, “dono da rua
esquecido no celular, dentro do carro”, etc. etc. Sua ‘brilhante’ ideia deve
ter começado como uma forma de passar o tempo diante dos engarrafamentos , para
se distrair sozinho , até que...
Soube disso
quando coisa de dois meses atrás
combinei com ele uma corrida até o aeroporto. Avisei-o: “Vá pela Africanos, para chegarmos mais depressa.”
“Nada disso, vamos pela Jerônimo de Albuquerque, sei o que eu tô fazendo.”
Estranhei mas não disse nada, afinal, o ‘especialista’ era ele. Como era de se
esperar deparamos com um puta de um engarrafamento. Estranhamente, seu estado
de euforia prevalecia sobre minha chateação. De repente, ordenou: “Vamos
apostar” “Como, apostar o quê?” “Aposto que é guarda fazendo blitz” “Não posso acreditar , a uma
hora dessas, nessa avenida ” Ele fez que não ouviu: “Se for guarda fazendo
blitz você me paga a corrida em dobro, se a causa for qualquer outra coisa você
não me pagará nada.” Devo confessar que até eu fiquei ansioso para
ver que bicho ia dar.
Era uma
blitz mesmo. Ele vibrou como se estivesse comemorando um gol do Sampaio, nosso
time. A coisa só desandou quando fui pagar a corrida e ele me contestou: “Tá
faltando mais grana, a corrida foi em dobro” “Como é que é?”, retruquei abismado. Ele, com a maior cara-de-pau: “Você
vai pagar em dobro, fizemos uma aposta e você perdeu” “Que diabo de aposta,
Veras, pensei que fosse brincadeira.” “Brincadeira? Passa já a grana, compadre,
apostas, apostas, amigos à parte” Enquanto discutíamos, o risco de perder o vôo aumentava. Paguei uma corrida e meia alegando falta de dinheiro,
o que não era mentira, e ele saiu bufando, cantando pneus e me xingando.
Cerca de um mês depois, com meu
carro na oficina e sem ter a quem recorrer,
liguei para Veras. Quem atendeu foi a esposa. Agoniada, ela me informou que
Veras aparecera com o carro batido, graças a um acidente provocado por ele
mesmo. Candidamente Veras lhe explicara ao chegar em casa, sem o carro, que
provocara um engarrafamento na avenida, frustrado porque passara duas horas sem
que tivesse havido um só acidente e ele precisava se divertir. Dá pra acreditar?
Diante do seu nervosismo disse-lhe que tinha um amigo psicanalista, Túlio, e
que, provavelmente ele iria nos indicar
um rumo a seguir.
Antes mesmo
que procurasse Túlio o encontrei, por
coincidência, no Shopping Tropical. Chamei-o para um chope rápido ele aceitou e
começamos a bater papo. Contei-lhe sobre Veras e ele nem se espantou com isso:
“Acredite, o trânsito é mesmo coisa de louco, tem gente muito pior” “Quer dizer então que nem adianta o
Veras te procurar, que isso nem chega a
ser doença e que não existe remédio?”
“Que doença, amigo, o sujeito hoje em dia para ser considerado louco só se for
louco de pedra , e quer saber de uma coisa? Eu mesmo, quando estou no trânsito a
coisa que mais me dá prazer é tentar adivinhar o que está travando o fluxo,
adiante. E não sou só eu. Ou você nunca reparou que depois de horas num
engarrafamento todos param diante do acidente e ficam contemplando o que
aconteceu, como se não tivessem o que fazer? É uma forma legal de se distrair.
Talvez, a única”.
Olhei para Túlio
tentando descobrir se detectava algum sinal de psicopatia em sua face. Desisti. Tudo
parecia normal em suas atitudes quando nos despedimos. “Tá de carro?”, ele perguntou” “Não, tá na oficina” “Vai pra onde?”
“Tô indo pra Cohab” “Ora, te dou uma carona, vamos pela Jeronimo de
Albuquerque. O celular informa que faz
duas horas que o trânsito por lá flui normalmente ” “Opa, ainda bem!”, disse, agora
animado para pegar a carona. “ Não, não se
trata disso, é que...Se faz duas horas sem acidente, pelo que se conhece dessa
avenida, nos próximos quinze minutos tem tudo para pintar um engarrafamento daqueles. Já pensou que
barato? Poderemos apostar sobre a causa e nem vamos sentir o tempo passar. “
Dei meia volta,
fiz de conta que lembrara algo urgente, Inventei uma desculpa e fui embora: iria
de táxi, de ônibus, de carroça ou até andando, se fosse o caso. Já pensou se eu
começasse também a gostar da coisa?
Resolvi
tomar mais um chope enquanto me acalmava. Pelo menos por algum tempo, enquanto
durou o efeito do álcool, parei de ver em todo mundo que por ali circulava, um transimaníaco.
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