Um belo dia, você
lembra de que sua memória existe. Por uma notável coincidência justamente porque
começou a esquecer de muitas outras coisas. Num
dia você esquece da chave do seu carro, no outro da senha do seu
celular, no outro do nome de seu filho...
e até, por incrível que pareça, do seu
próprio neto . Não é que você o deixou no banco de trás do carro quando saiu
para comprar-lhe um game, foi tomar uma cervejinha e isso quase causou uma
tragédia? Ora, como você já não é nenhum garotão desconfia que essa sua memória tem sérios problemas e é
chegada a hora do ajuste de contas. Você começa:
“O que está acontecendo com você, Memória? De uns tempos
pra cá, sinto que você está me sacaneando, me traindo.”
“Você não devia
falar assim comigo. Sou uma anciã de respeito e cumpro com minhas obrigações na
medida do possível. Na verdade não sou eu que estou falhando, mas você.”
“Por que não me
lembrou que ontem era o último dia de pagar a conta do IPTU sem multa?
Por que não me avisou que o Armando
(para quem estou devendo uma baita grana ) é flamenguista ao invés de
vascaíno, deixando que lhe mandasse
aquela piada de vascaíno vitorioso no domingo? Por que me permitiu falar
o nome de Valdete, minha amante, no grupo de nossa família no what’s up? Que
está acontecendo, vamos, me diga!”
“Não posso compensar suas trapalhadas o tempo todo. Você
teria que se ajudar também, nunca se preocupou comigo, nunca correu pra se
exercitar, nem gostou de ler. Sequer uma palavrinha cruzada de vez em quando.”
“Podia confiar em você no passado, hoje, claramente, não.
Outro dia fui sair com a Valdete e ela
jogou na minha cara que eu estava virando broxa. Fiquei espantado, onde já se
viu? Ponderei que broxar uma única vez
nunca significou impotência e ela me
jogou na cara que não tinha sido uma só
vez , porém mais de vinte. Mais de vinte? Que diabo era isso? Eu não me lembrava desses detalhes, mas o pior é que
não tive convicção, entende? Deu-me um branco, deixei-a sair com ar de
vitoriosa e simplesmente por quê? Por que você não faz seu ofício direito.
Assim não dá.”
“Memória seletiva, seu ingrato! Você teria preferido que
eu lhe lembrasse seus fracassos?
Obsessivo, você teria gasto sua grana, com psicanalistas, quem sabe teria
tentado o suicídio. Quanta grana lhe salvei fazendo-o esquecer tantas coisas! Seu apelido de
infância era Boca de Chuveiro , lembra?
Claro que não, já que eu lhe fiz esquecer. Quer que eu lhe reviva o tempo em que
você que você riu do seu tio padre, quando este estava no caixão e você se
retirou para dar gargalhadas no banheiro só porque o viu pela primeira vez sem
barba? Acontece que hoje, cada dia a mais em sua vida se junta a um monte de
registros acumulados que eu tenho que guardar. E quem trabalha dobrado para
lidar com esse lixo sou eu. É lixo demais para uma vida só!”
“Minha vida, um lixo? Isso não vai ficar assim. Vou
procurar um médico e ele me dirá o que
fazer. Ou troco de memória ou faço outra. Com você eu não fico mais.”
- Quantos
anos você tem mesmo?
- 55.
- Mentira,
você tem 59. E daqui a pouco tempo estará com Alzheimer. Não é você que não me
quer, eu é que não quero mais seu corpo comigo.
Bye, Ciao, Até Logo, ou Au
revoir, a porta da rua é a serventia da casa!
Nenhum comentário:
Postar um comentário